quarta-feira, 30 de agosto de 2023

O PARADOXO DE RUSSEL - UMA EXPLICAÇĀO "SIMPLES" PARA UM PROBLEMA PROFUNDO



TLDR - Alerta de Textão:

Se você é daqueles que não tem paciência para textos longos, tipo, a maioria dos exemplares da Geração Z, esse artigo não é para você. Agora, se você é amante da ciência, da matemática, da filosofia e busca conhecer as coisas em profundidade, vá em frente. Tenho certeza de que você vai gostar. Cuidado apenas para nāo dar um nó na sua cabeça …

_______________________ 

Há 122 anos, em 1901, o matemático e filosofo inglês Bertrand Russell descobriu um problema no centro da matemática e de todas as ciências.

O problema, conhecido como o Paradoxo de Russell, tinha a ver especificamente com um ramo da matemática chamado Teoria dos Conjuntos. Russell e outros matemáticos alegam ter resolvido o paradoxo, mas isso pode não ter acontecido e as implicações são de uma profundidade incrível.


Carta de Bertrand Russel para Gottlob Frege relatando a descoberta do Paradoxo


Teoria dos Conjuntos

Para entender como o paradoxo surgiu é preciso entender, antes, o que é a Teoria dos Conjuntos. Então, vamos lá.

O que são números? Por exemplo, o número 4. 

Não estamos falando de 4 tomates, 4 batatas e sim do no 4 em si mesmo. Também não estamos falando de sua representação, “4” é apenas uma representação arábica do numeral quatro, escrita num pedaço de papel. Existem outras, por exemplo, “IV” é uma representação romana do numeral quatro, que em português costumamos usar para nos referir aos séculos.

Sabemos um monte de coisas sobre o no 4. Ele é par, divisível por 2, é a raiz quadrada de 16 ...o número quatro em si mesmo, porém, é algo que ninguém nunca viu ou tocou, mesmo assim, parecermos saber muita coisa sobre ele, que junto com todos os outros nos é essencial para a ciência, tecnologia e toda a vida humana.

Emmanuel Kant, um filósofo Prussiano que viveu no Século XVII entre 1724 e 1804, dizia que a matemática é uma construção da mente humana. Se isso estiver correto, então, as verdades matemáticas, de certo modo, são subjetivas

                          Emmanuel Kant

Mas os filósofos alemães e ingleses não gostaram disso. Gottlob Frege e Bertrand Russell achavam que a matemática precisa ser objetiva. Para refutar e contrariar a visão de Kant, eles desenvolveram a visão do logicismo.


O logicismo argumenta que a matemática é um ramo da lógica e o tipo mais básico de matemática, que é a aritmética, pode ser reduzida a uma “Logica Básica de Primeira Ordem” + a “Teoria dos Conjuntos”.

Eles achavam que, se fossem bem-sucedidos em reduzir a aritmética à logica conjugada à teoria dos conjuntos, poderiam responder a pergunta: “O que é um número?”. A resposta seria: “Números são conjuntos”. 

Mas, o que são conjuntos?

Conjuntos são coleções de objetos. O ramo da matemática que estuda conjuntos ou coleções de objetos foi inventado pelo matemático de origem russo-alemã Georg Cantor, em 1870.

Cantor provou que algumas infinidades são maiores do que outras infinidades. Isso mesmo! A ideia é que você pode ter um número infinito de uma coisa, de um lado e um número infinito de outra coisa, do outro, mas você teria mais de uma coisa do que da outra. Sim, concordo, é bizarro!



Para provar isso, Cantor teve que inventar a Teoria dos Conjuntos, mas a teoria vai enfrentar um terrível problema, ele vai tentar resolver o problema, mas não vai conseguir de fato resolvê-lo.

Teoria Ingênua dos Conjuntos

Para você entender melhor a teoria dos conjuntos, vamos mostrar para você a Teoria Ingênua dos Conjuntos

É chamada ingênua só porque é a teoria que pode ser formulada em linguagem comum, como o português, em contraste com a Teoria Axiomática ou Teoria Formal dos conjuntos, que é formulada em uma linguagem artificial lógica. 


  Teoria Axiomática dos Conjuntos

Mas você não precisa se preocupar com nenhuma dessas coisas. Um conjunto é uma coleção de objetos, tipo, um conjunto de lápis coloridos. 


                                    Conjunto formado por três lápis coloridos


O conjunto acima contém 3 lápis coloridos, então, esse conjunto de lápis contém 3 itens dentro dele, mas os objetos dentro de um conjunto não precisam estar unidos nem pelo tempo, nem pelo espaço, para ser considerado um conjunto para fins de teoria dos conjuntos.

Portanto, por um lado podemos ter esse conjunto dos três lápis, mas também podemos ter o conjunto de todas as pessoas que estão lendo esse artigo, que estão espalhadas pelo mundo todo e lendo separadas pelo tempo.

Além disso, os componentes (itens ou elementos) de um conjunto não precisam estar relacionados uns com os outros de nenhuma maneira significativa ou que faça sentido.

Por exemplo, um conjunto pode ser formado pelo Pelé - três vezes campeão em copas do mundo - e pela metade superior do Cristo Redentor. São coisas que não tem nada a ver uma com a outra, mas esses dois elementos, esses dois itens, formam um conjunto.

Qualquer coisa a qual possamos nos referir, qualquer coisa que possamos imaginar, pode formar um conjunto. Podemos ter um conjunto formado por Pelé, três vezes campeão em copas do mundo e por Harry Potter, o mago adolescente que não existe.

Aliás, conjuntos podem até incluir coisas e elementos, que nem existem, que podemos imaginar, seria o conjunto das coisas que não existem. Isso também é um conjunto, que contêm muitas e muitas coisas, talvez um no infinito de coisas ... que não existem.

Você tá vendo esses símbolos: { }. Eles são chamados de “colchetes” e são usados na teoria dos conjuntos para representar um conjunto. Todos as coisas dentro dos colchetes, formam o conjunto. O conjunto de Pelé e o no 4 é representado assim: 

{Pelé, 4}

Existem duas coisas nesse conjunto, um número e um jogador de futebol. Usando essa notação, se quisermos capturar por escrito um conjunto, teremos que escrever todas as coisas que estão dentro daquele conjunto. Mas isso pode ser complicado se o conjunto for muito grande.

Tipo, o conjunto de todos os gatos. O conjunto de todos os gatos inclui muitos e muitos elementos, teríamos que listar muitos gatos e nem sabemos o nome de todos eles, todos os gatos do mundo, todos os gatos do universo.

Conjunto formado por todos os gatos

Então, usamos essa notação abaixo, que se lê: “o conjunto de todos os ‘x’, tal que ‘x’ é um gato”.  

{x: x é um gato}

Isso é chamado de Construção de Conjuntos ou Notação Intencional, mas você não precisa se preocupar com isso, nem memorizar isso. A outra coisa importante é a palavra contém.  

Dizemos que um conjunto contém todos os itens que pertencem àquele conjunto. O conjunto que mencionamos anteriormente, contém Pelé e o número 4.

{Pelé, 4}

O conjunto de todos os gatos contém Garfield e todos os outros gatos.

{x: x é um gato}

“Conjunto é um monte de coisas que permite ser pensado como uma coisa só” - Georg Cantor (1815-1918). Na verdade, isso nunca foi dito por Cantor. Ele disse algo parecido, que pode ser resumido assim, só que ele disse em Alemão.

Quando Cantor inventou a Teoria dos Conjuntos em 1870, ele não estava simplesmente criando uma espécie de jogo matemático. Nós lidamos com conjuntos o tempo todo, todos os dias. 

Quando alguém diz “aquela pilha de batatas é enorme”, não está dizendo que as batatas individualmente são enormes – algumas podem até ser muito grandes, mas outras são muito pequenas. Quando dizemos que aquela pilha de batatas é enorme, estamos nos referindo à pilha e não às batatas individualmente.
 

Fazemos o mesmo com objetos e itens que não estão todos juntos espacialmente. “A população de gatos no mundo é enorme”. Os gatos não estão reunidos espacialmente no mesmo lugar, mas estamos nos referindo a população de gatos como um todo. Estamos falando que a população é enorme, não estamos dizendo que os gatos são enormes, apesar de alguns deles poderem ser muito pesados.

O Paradoxo de Russel, o problema lógico descoberto por Russel em 1901, tem a ver com uma ou mais regras da Teoria dos Conjuntos. Então, vamos ver rapidamente quais são algumas dessas regras, antes de falarmos do paradoxo.

Regra # 1 – Composição irrestrita: 

Significa, apenas, que podemos construir qualquer conjunto que a gente queira. Qualquer conjunto em que você possa pensar, é um conjunto. Na versão axiomática formal da Teoria dos Conjuntos, isso é chamado de o “Axioma da Compreensão Irrestrita”, mas você não precisa memorizar isso.

Regra # 2 – A identidade do conjunto é determinada pelos seus itens: 

Significa que aquilo que faz um determinado conjunto ser o que ele é, são as coisas que estão dentro dele. Não importa que nome você dá para os itens, que nome você dá para o conjunto todo, o que interessa é o que está dentro do conjunto. Na versão axiomática formal isso é chamado de “Axioma da Extensão (ou da Extensionalidade)”, você não precisa lembrar disso.

Regra # 3 - A ordem dos itens de um conjunto, não importa. 

Os conjuntos {1,2} e {2,1} são a mesma coisa. Esses dois conjuntos são o mesmo conjunto, exatamente porque não importa a ordem em que você coloca os seus itens ou seus componentes. Se você prestar bem atenção, perceberá que a regra # 3 vem da regra # 2, que diz que a identidade do conjunto é determinada pelos seus itens. Ou seja, tudo que importa é quais são os seus itens, não importa a ordem deles.

Regra # 4 – Repetições não mudam nada: 

O conjunto {1,2,2} que contêm o número 1, o número 2 e o número 2 novamente, é exatamente o mesmo conjunto que {1,2}. Ou seja, o conjunto {1,2,2} contêm como itens os números 1 e 2, não importa se o número 2 é repetido, não importa se você repetir um item ou um componente do conjunto. Isso não muda o conjunto, porque a identidade do conjunto é determinada pelos seus itens. A regra # 4, novamente, é realmente derivada da regra # 2. 

Regra # 5 – A descrição dos itens do conjunto, não importa: 

Por exemplo, o conjunto {Pelé}, que contêm apenas Pelé, é o mesmo que {x: x é o Rei do Futebol} que é o conjunto de todos os ‘x’ tal que ‘x’ é o Pelé. Estou considerando que Maradona não é rei (hahaha). Não importa se você descreve o conjunto como o Rei do Futebol, ou o jogador historicamente mais conhecido no mundo, o conjunto contém o mesmo item que é ... o Pelé.

Regra # 6 – A união de dois ou mais conjuntos é um conjunto: 

Significa que se você pegar o conjunto de todos os gatos e pegar o conjunto de todos os cachorros e combinar os dois, você vai ter o conjunto de todos os gatos e cachorros, que também é ele mesmo, um conjunto. Essa regra # 6 vem da regra # 1, porque a regra # 1 diz que você pode fazer o conjunto que você quiser. Se você tem dois conjuntos e coloca os dois juntos, você tem um outro conjunto e você pode fazer isso se quiser.

Regra # 7 – Qualquer subconjunto é um conjunto: 

Um subconjunto nada mais é do que um conjunto contendo alguns dos itens contidos num outro conjunto. Essa regra também vem da regra # 1. Se você pode fazer qualquer conjunto, então, de qualquer conjunto que você tenha, você pode pegar um grupo de itens daquele conjunto e esse grupo de itens será um subconjunto, o que também faz dele um conjunto. 

Regra # 8 – Um conjunto pode ter apenas um item: 

O conjunto {Pelé} contém só um item, apenas um elemento, que é o Pelé – o Rei do Futebol. Um conjunto com apenas um item é chamado de “Conjunto Único”. É importante notar que {Pelé} ≠ Pelé. O jogador Pelé é considerado Rei do Futebol, mas o conjunto único {Pelé}, que contêm o jogador Pelé, nunca ganhou uma copa do mundo, nunca jogou bola, o conjunto não é rei do futebol, porque ele é ... apenas “um conjunto”. A regra # 8 também deriva da regra # 1. Se você pode construir qualquer conjunto que você queira, então você pode construir um conjunto com apenas um item dentro dele, com quantos elementos você queira, inclusive apenas um elemento.

Estamos nos aproximando do ponto em que uma dessas regras vai criar o Paradoxo de Russel e explodir todas essas coisas, mandando tudo para os ares. 

Espera aí, está chegando.

Regra # 9 – Um conjunto pode não ter nenhum item: 

Esse { } é um conjunto vazio ou conjunto nulo, que você pode representar com os colchetes sem nada entre eles ou com o símbolo ∅, uma espécie de zero cortado no meio, que significa nada. O fato de poder existir tal conjunto vazio, deriva da regra # 1, a composição irrestrita. Você pode criar qualquer conjunto que quiser, inclusive um conjunto com nenhuma coisa dentro dele. Mas a regra # 9 também é derivada da regra # 2 que diz que identidade do conjunto é determinada pelos seus itens, porque existe apenas um conjunto vazio, apenas um conjunto nulo. Esse conjunto que não tem nada dentro, é definido pelo fato de não haver nenhum item nele. Se você tiver dois conjuntos com nenhum item dentro de ambos, eles serão o mesmo conjunto, o conjunto vazio.

Agora que as coisas ficam interessantes.

Regra # 10 – Você pode ter conjuntos de conjuntos: 

Essa regra também tem origem na regra #1. Se você pode criar um conjunto a partir de qualquer coisa, então, você pode criar um conjunto que tenha conjuntos dentro dele, não é verdade? Por exemplo o conjunto {x: x é um conjunto único}, que se lê o conjunto de todos os ‘x’ onde ‘x’ é um conjunto único. Esse é o conjunto de todos os conjuntos que têm apenas um item dentro dele. Esse conjunto contém o conjunto {Pelé}, também contém o conjunto {17}, que possui como único item dentro dele o número 17. Você também poderia criar o conjunto de todos os conjuntos, que seria expresso assim: {x: x é um conjunto}.

 

Gottlob Frege à esquerda e Bertrand Russel à direita


Aliás, foi assim que Gottlob Frege e Bertrand Russell responderam aquela pergunta do início desse artigo: “O que são números?”. Eles pensaram – pelo menos até que o Paradoxo de Russel explodisse a coisa toda – que o número ‘1’ é nada mais que o conjunto de todos os conjuntos únicos, é o conjunto de todos os conjuntos com apenas um item. O número ‘2’ é apenas o conjunto de todos os conjuntos com dois itens ... 

Você deve estar pensando, poxa, que coisa doida, que treco confuso. O que significa o número 4 ser apenas um certo conjunto? O que isso realmente significa? Não se preocupe, ninguém entende o que isso significa. Não de verdade. 

Seja como for, não importa, porque toda essa coisa vai pelos ares agora mesmo, com a próxima regra, que é a regra # 11.

Regra # 11 – Os conjuntos podem conter a si mesmos: 

Essa é muito doida e vai criar o Paradoxo, mas, ela vem também da regra # 1. Se qualquer coisa que você possa pensar, pode ser jogada dentro de um conjunto, então, você pode jogar os conjuntos dentro deles mesmos né não?

Considere, agora, o conjunto de todos os gatos. 

Esse conjunto, contém ele mesmo? 

Não! Porque esse conjunto não é, ele mesmo, um gato, ele é um conjunto. Todos os itens dentro do conjunto de gatos, são gatos. O conjunto de todos os gatos, só contêm, gatos. Portanto, o conjunto de todos os gatos, não contêm a si mesmo.

E o conjunto de todos os conjuntos? O conjunto de todos os ‘x’ tal que ‘x’ é um conjunto: {x: x é um conjunto}. Será que esse conjunto, contém a si mesmo?

Sim! Porque esse conjunto contém todos os conjuntos e ele mesmo, é um desses conjuntos. Portanto, ele contém a si mesmo.

O conjunto de todas as coisas que seu estou pensando nesse momento. Em geral, esse conjunto não conteria a si mesmo, mas nesse exato momento ele contém porque estou pensando nele como um conjunto. 


Bertrand Russel em 1901 - 1902


Vamos acompanhar a linha de pensamento que Russel estava seguindo entre 1901 e 1902. Quando descobriu o paradoxo, ele estava refletindo sobre a ideia de conjuntos poderem conter a si mesmos e no desenvolvimento da regra # 11.

Pense em todos os conjuntos que contém e que não contém a si mesmos

Bertrand Russel na Inglaterra


Russel, em 1901 na Inglaterra, pensou no seguinte. Tá bom, vamos pegar todos os conjuntos que contêm a si mesmos, vamos colocar todos juntos e fazer um conjunto disso. Temos então (em vermelho abaixo) o conjunto de todos os conjuntos que contém a si mesmos, ao qual nos referimos assim: {x: x é um conjunto que contêm a si mesmo}


E Russel seguia refletindo consigo mesmo em 1901, enquanto caminhava em direção a um paradoxo que iria explodir toda a teoria que cria os fundamentos da matemática e toda a ciência. 

Agora, vamos pegar todos os conjuntos que não contém a si mesmos, colocar todos juntos e fazer um conjunto deles. Temos então (em vermelho abaixo) o conjunto de todos os conjuntos que não contêm a si mesmos e escrevemos assim: {x: x é um conjunto que não contém a si mesmo}

 

... então, algo aconteceu! Ele percebeu o problema, o descreveu em uma carta para Gottlob Frege no dia 16 de junho de 1902. 


Frege recebeu a carta – reproduzida acima. Frege leu a carta de duas páginas e ficou desorientado, teve um colapso físico e precisou ser hospitalizado. A carta fazia essa pergunta: 

O conjunto de todos os conjuntos que “não contém” a si mesmos, esse conjunto contém a si mesmo?  

 


                                                              
Gottlob Frege


A pergunta, novamente, em notação é: o conjunto {x: x é um conjunto que não contém a si mesmo}, contém a si mesmo? 

Bem, vamos ver as duas possibilidades.

Se contém a si mesmo, então o conjunto está aqui dentro: {x: x é um conjunto que não contém a si mesmo} e a única maneira de estar aí dentro é atender a condição, isto é, atender a condição de não conter a si mesmo. Portanto, se esse conjunto contém a si mesmo, ele atende a condição e a condição diz que ele não contém a si mesmo!!! Se ele contém a si mesmo, então ele não contém a si mesmo?!? 

Bom, vamos então para a outra possibilidade, a possibilidade alternativa.

Se não contém a si mesmo, ele atende a condição, é um conjunto que não contém a si mesmo. Portanto, se não contém a si mesmo, atende a condição e está dentro do conjunto {x: x é um conjunto que não contém a si mesmo}, mas aí significa que contém a si mesmo!!! Se ele não contém a si mesmo, então ele contém a si mesmo?!? 

Se o conjunto tanto contém a si mesmo, como não contém a si mesmo, isso cria uma contradição e ... a Teoria dos Conjuntos não funciona. 

Esse é o Paradoxo de Russel.

Você deve estar pensando, tudo bem, sem problemas, a Teoria dos Conjuntos é apenas um monte de regras inventadas. A matemática é assim mesmo, eles apenas inventam as coisas, os axiomas são estipulados, o que equivale dizer que são alegações inventadas. 

Eles apenas criaram todas aquelas regras, a regra # 10, a regra # 11 e a regra # 11 é a fonte do problema, a origem do paradoxo. No momento que você deixa os conjuntos conterem a si mesmos, você passa a poder criar o conjunto {x: x é um conjunto que não contém a si mesmo} e é esse conjunto que leva ao paradoxo. 

Então, vamos simplesmente mudar as regras, certo? Claro, foi exatamente isso que Russel tentou fazer.

                                                           Bertrand Russel


Russel tentou mudar as regras da Teoria dos Conjuntos. Ele criou novas regras e de acordo com as novas regras, os conjuntos não podem conter a si mesmos. 

Foi isso que fizeram outros matemáticos trabalhando com a Teoria dos Conjuntos, como a “Teoria dos Conjuntos de Zermelo-Fraenkel” que criou a Teoria dos Conjuntos com algumas restrições, tipo, se livrando da Regra # 11.


Mas se você se livrar da Regra # 11 e disser que os conjuntos não podem conter a si mesmos, você também vai ter que se livrar da Regra # 1 – Composição irrestrita, o Axioma da Compreensão Irrestrita ou seja lá como for que você quiser chamar essa regra – porque não poderá construir qualquer conjunto que queira.

É isso que todos os matemáticos fazem, mas ... será que isso funciona? Tipo, será que podemos simplesmente mudar as regras? Lá atras, quando estávamos passando por todas aquelas regras, a # 1, a # 2 percorrendo o caminho todo até a # 11, estávamos apenas inventando aquelas regras?



Esse sou eu, acabo de dizer isso. O que vou argumentar pelos próximos, sei lá, vinte parágrafos, é que as regras da Teoria dos Conjuntos não são regras inventadas. Elas são regras reais, não foram criadas, são regras objetivas, que já existem e elas governam talvez uma das práticas mais fundamentais da existência humana: a predicação verbal (ok, o termo é bizarro, mas tem origem no ensino da gramatica, de predicados, sujeitos, substantivos, essas coisas)

Para isso, vou ter que te ensinar um pouco de linguística e assim que tiver feito isso, vamos gerar novamente o “Paradoxo de Russel “e mostrar que ele nunca foi um paradoxo apenas para a Teoria dos Conjuntos, mas é também um paradoxo para toda nossa linguagem e nosso pensamento em si mesmo. Vamos lá.  

A sentença “Garfield é um gato” tem quatro palavras. Gramaticalmente, porém, é composta por duas partes essenciais.

Sujeito é aquilo sobre o qual a sentença fala, a sentença fala sobre Garfield. O predicado, diz algo sobre Garfield. Que Garfield tem certa característica, ou seja, ser um gato.  

Pelé é o sujeito da sentença acima, aquilo sobre o quê a sentença fala e goleia é o predicado. Podemos dizer que predicados são “verdades” sobre determinados sujeitos. Ser um gato é verdade sobre Garfield e golear é verdade sobre Pelé, mas não é verdade sobre mim.

Conjunto -------------- item

Predicado -------------- sujeito


Qual a relação entre conjuntos e itens? É que os conjuntos contêm itens, os itens estão contidos nos conjuntos. Qual a relação entre predicados e sujeitos? É que predicados são verdades sobre os sujeitos ou um predicado é uma verdade sobre o sujeito.

O que faremos agora é nos apoiar nessa similaridade para tentar gerar novamente o Paradoxo de Russel, mas não com base em regras inventadas sobre a Teoria dos Conjuntos, mas com regras não inventadas sobre predicação verbal (linguagem). 

Predicação, deixe-me relembrar a você, é apenas a prática de dizer coisas sobre as coisas. A prática de predicação é onipresente, ela é vastamente disseminada, fazemos isso constantemente. Linguisticamente, fazemos isso o tempo todo. Praticamente todo pensamento que temos, é um predicado de alguma coisa, sobre alguma coisa.

Lembra da regra # 1, da Composição Irrestrita? Ela diz que existe um conjunto para qualquer coleção de coisas ou de coisa, que possamos imaginar. Essa regra parece igualmente valida para predicados. 

 Regra # 1 (da predicação) – Existe um predicado para qualquer característica que se possa imaginar de uma coisa: Qualquer coisa que você possa dizer sobre uma coisa, tem um predicado para isso. Claro que tem.

Aquelas regras da Teoria dos Conjuntos que permitiram a Russel, em 1901, a gerar seu paradoxo, as regras da teoria dos conjuntos, as regras relevantes, são verdadeiras também para predicação.

 

Bertrand Russel


Regra # 10 (da predicação) – Você pode predicar coisas (encontrar predicados) de predicados, da mesma forma que pode criar conjuntos de conjuntos. Pode sim. Aqui vai uma sentença perfeitamente válida, gramaticalmente, na língua Portuguesa:

“É um gato” soa engraçado.

Soa sim, se você pensar bem, soa engraçado mesmo. Nessa sentença, “é um gato” funciona como o sujeito da sentença e “soa engraçado” nessa sentença, é o predicado, que está dizendo alguma coisa sobre o sujeito “é um gato”, que também é um predicado. Isso é perfeitamente compreensível e pode ser feito em qualquer linguagem natural. Seja no Português, no Inglês, no Espanhol, em qualquer língua, você pode predicar coisas de predicados.

Sentiu para onde isso está caminhando?

Regra # 11 (da predicação) – Os predicados podem ser verdades sobre si mesmos, da mesma forma que na Teoria dos Conjuntos, os conjuntos podem conter a si mesmos. Está de acordo? Eu acho que está certo, vamos ver. Considere, por exemplo, a sentença:

“É um gato” é um gato.

Isso é verdade? Não não é. 

“É um gato” é um predicado, não tem rabo, não tem bigode, não mia, “é um gato” não é um gato, é um predicado. Que tal essa outra sentença:

“É um predicado” é um predicado.

Sim, isso é verdade. “É um predicado” é de fato um predicado, é sim e esse é um caso em que um predicado é verdade sobre si mesmo. Ele diz sobre si mesmo que é um predicado e esta certo, então tudo bem com a regra # 11 – predicados podem ser verdades sobre si mesmos.

Alguns predicados não são verdades sobre si mesmos.

Há predicados que não são verdade sobre si mesmos. “Goleia” não goleia porque é um predicado, não pode jogar futebol, não pode fazer gols, portanto, não é verdade dizer que “goleia” goleia, não, isso não pode, então isso é falso. “Tem gosto de galinha” é um predicado, algo pode ter gosto de galinha, mas “tem gosto de galinha” não pode ter gosto de galinha, porque é um predicado, não tem gosto de nada, não pode ter gosto de galinha. Assim sendo, ele não é verdade sobre si mesmo.

Mas existem inúmeros predicados que são verdade sobre si mesmos. Como vimos antes, “é um predicado” é um predicado, então, ele é verdade sobre si mesmo. “Uma cadeia de palavras” é uma cadeia de palavras, sim, é mesmo. Portanto, esse predicado é verdade sobre si mesmo.

Agora, vamos tentar criar um predicado que seja verdade de todos os predicados, que são verdade sobre si mesmos. Esse predicado seria:

“é verdade sobre si mesmo” 

“É verdade sobre si mesmo” é verdade sobre todos os predicados que são verdade sobre si mesmos. Está correto, nada errado com esse predicado, mas e se tentássemos criar um predicado que seja verdade sobre todos os predicados que não são verdade sobre si mesmos? Esse predicado seria:

“não é verdade sobre si mesmo” 

Agora, vamos gerar o paradoxo. Não dá escrever isso numa carta e mandar para Gottlob Frege, porque Gottlob Frege, está morto. 

Então, vamos escrever para você aqui mesmo, nessa página. Aí vai a questão.

“não é verdade sobre si mesmo” 

Esse predicado é verdade sobre si mesmo? Vamos ver ambas as possibilidades.

Se for verdade sobre si mesmo, o que ele está dizendo sobre ele próprio? Ele está dizendo que não é verdade. Portanto, se esse predicado for verdade sobre si mesmo, então, ele não é verdade sobre si mesmo. Caramba! Vamos ver a alternativa.

Se não for verdade sobre si mesmo. Se esse predicado não for verdade sobre si mesmo, então, ele não é verdade sobre si mesmo .... mas aí ele atende a condição de “não ser verdade sobre si mesmo”!!! O predicado atende a característica especificada pelo próprio predicado. Ou seja, se ele não é verdade sobre si mesmo, ele passa a ser verdade sobre si mesmo!!!! Não ser verdade é a mesma coisa que ser falso. Se ele é falso sobre si mesmo, então ele é verdade sobre si mesmo!?!? Ele é ambos, falso e verdadeiro

Isso é uma contradição e não é apenas um paradoxo do qual possamos escapar simplesmente mudando as regras, declarando que não existe a regra # 11.

No caso da Teoria dos Conjuntos, talvez possamos simplesmente alegar que os conjuntos não podem conter a si mesmos. Mas no caso dos predicados, da predicação, da linguagem, daquilo que é a nossa fala, nossas conversas, de dizer coisas sobre outras coisas, não podemos apenas alegar que predicados não podem ser verdade sobre si mesmos ... porque eles podem! A regra # 11 é verdadeira e uma vez que ela seja verdade, vai criar o paradoxo.

Esse é um paradoxo do qual não podemos escapar!


Grande abraço,

Eder.



Disclaimer: Esse artigo é a tradução adaptada do vídeo “Russell's Paradox - a simple explanation of a profound problem”, criado pelo Professor de Filosofia da University of North Carolina, Jeffrey Kaplan, disponível no Youtube.



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