terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

Transformação digital não tem a menor importância como diferencial estratégico para seu fundo de pensão

 


De São Paulo, SP.


Trinta e dois anos atrás, a maioria dos conselheiros e diretores dos fundos de pensão enxergava os computadores como ferramentas relegadas aos empregados de níveis inferiores. Analistas, técnicos e até secretárias eram glorificados com seus desktops como meios para tornar mais rápido cálculos, digitação e manipulação de dados e informações.

 

Ainda lembro bem a competição para ficar com o primeiro PC, doado pela Itautec em 1989 para o fundo de pensão onde eu trabalhava, como reciprocidade pela gestão dos investimentos que fazíamos junto ao Banco Itaú. Tanto a área de seguridade, que eu gerenciava, como a área de saúde, gerenciada por um colega, queriam o computador.

 

Acabei propondo que dividíssemos o tempo de uso do PC entre as duas áreas, com o beneplácito do diretor superintendente que assistia a “briga” de longe, sem o menor interesse no equipamento. 

 

Raro era o diretor presidente de um fundo de pensão, naquela época, que deixava seus dedos tocarem o teclado de um computador, quanto mais pensar na nova tecnologia como estratégia de negócio. 

 

Hoje a história é completamente diferente. CEOs de fundos de pensão discutem rotineiramente com seus conselhos deliberativos, formas de usar a tecnologia digital como diferencial e como vantagem competitiva.

 

É uma premissa razoável e até intuitiva, pensar no valor estratégico que a transformação digital pode ter na evolução do modelo de negócios da previdência complementar ou de qualquer outro segmento.

 

Mas isso é um erro. O que faz um recurso ser estratégico, que o torna a verdadeira sustentação de uma vantagem competitiva, não é sua disseminação, mas sua escassez. Você só ganha a dianteira sobre seus rivais se você fizer algo que eles não possam fazer ou tiver algo que eles não tenham.  

 

No ponto em que estamos atualmente os meios para se fazer a transformação digital – tipo: big data, IA, processamento e armazenamento em nuvem, IoT, dispositivos moveis - estão disponíveis e ao alcance de todos.

 

O alcance e a disseminação das tecnologias por trás da transformação digital estão fazendo com que ela deixe de ser um recurso potencialmente estratégico para ser uma commodity na produção de bens e serviços. A transformação digital está se tornando o custo que precisa ser pago por todos que quiserem continuar a fazer negócios, sem que isso torne qualquer player distinto em relação aos demais.  

 

A transformação digital é a face mais nova de uma serie de tecnologias amplamente adotadas na reformulação da economia ao longo dos últimos duzentos anos. Só que dessa vez, diferentemente das anteriores, elas estão disponíveis e ao alcance de todos quase que imediatamente após terem surgido.

 

Por um curto período de tempo, a máquina a vapor, a estrada de ferro, o telégrafo, o telefone, a eletricidade, o motor a combustão, a Internet e todas as novas tecnologias, geraram oportunidades, abriram caminhos e deram uma vantagem competitiva na infraestrutura e no comercio para empresas com visão de futuro. 

 

Na medida em que sua disponibilidade e acesso foram aumentando e seus custos foram diminuindo, essas tecnologias foram se tornando commodities. Sob o ponto de vista estratégico, elas se tornaram invisíveis, deixaram de fazer diferença. 

 

Isso é exatamente o que está acontecendo hoje com as tecnologias por trás da transformação digital e suas implicações para diversos segmentos de negócio, incluindo aí os fundos de pensão.

 

Diferencial efêmero e comoditização da tecnologia

 



Tecnologias proprietárias, com acesso restrito, até podem criar um diferencial competitivo por determinado tempo. Uma farmacêutica que cria uma droga inovadora ou uma indústria que desenvolve um processo difícil para os competidores replicarem, vão auferir lucros maiores do que seus rivais por um tempo mais longo.

 

Tecnologias “infraestruturais”, em contraste, possuem mais valor quando partilhadas do que quando adotadas individualmente. Pense na estrada de ferro, na energia elétrica, no celular ou na Internet. As características e a economia das tecnologias infraestruturais tornam inevitável que, com o tempo, venham a ser amplamente compartilhadas e se tornem parte da infraestrutura geral dos negócios.

 

No início, as tecnologias infraestruturais podem assumir a forma de tecnologias proprietárias, quando o acesso a elas é igualmente restrito. No entanto, a armadilha que pega os executivos é assumir, quaisquer que sejam as tecnologias (proprietária ou infraestrutural), que a vantagem e as oportunidades delas decorrentes estarão disponíveis indefinidamente.   

 

Ou seja, o potencial de uma tecnologia para diferenciar determinada empresa das demais – o poder estratégico – inexoravelmente declina na medida que ela se torna acessível e barata. Esse tempo de diferenciação vem encurtando ao longo da história e tendendo a zero.

 

A chegada da Internet acelerou ainda mais o processo de comoditização da TI ao fornecer um canal perfeito para entrega de aplicativos genéricos. 

 

Para quê desenvolver seu próprio aplicativo de reconhecimento facial, de IA ou de contabilidade de fundo de pensão, quando se pode comprar um software já pronto ou um aplicativo no estado da arte, por uma fração do preço de desenvolvimento?

 

Não apenas o software é replicável. Como muitas atividades e processos foram sendo embutidos nos softwares, estes também passaram a ser replicáveis. Quando um fundo de pensão compra um aplicativo genérico, também está comprando um processo genérico. Tanto a economia gerada como os benefícios da interoperacionalidade fazem com que valha a pena sacrificar a diferenciação, isso passa a ser inevitável.

 

Imagine um processo de prova anual de vida e residência feito através de dispositivos moveis, embutindo geolocalização, com reconhecimento biométrica e registro no blockchain. Você prefere desenvolver uma solução proprietária ou comprar um processo genérico disponível no mercado? 

 

Operar um fundo de pensão hoje pode ser feito simplesmente através da compra (com pagamento de honorários mensais) de softwares e serviços de terceiros, da mesma forma que se compra energia elétrica ou serviços de telecomunicação. Na medida que mais e mais fundos vão substituindo aplicativos customizados por soluções genéricas, as capacitações de TI e a transformação digital vão se tornando cada vez mais homogêneas.

 

Quando Gordon Moore previu que a capacidade de processamento dos chips de computador dobraria a cada ano, ele estava indiretamente prevendo a queda livre no preço da funcionalidade dos computadores. O custo de processamento caiu de US$ 480 por milhão de instruções por segundo (MIPS-Million Instructions per Second) em 1978, para US$ 50 em 1985, para US$ 4 em 1995 e segue em queda livre e na velocidade da luz em áreas como transmissão e armazenamento de dados.

 

O rápido acesso e disseminação das tecnologias digitais não estão apenas democratizando o acesso à revolução das máquinas, estão destruindo uma das maiores barreiras à competição nos negócios até mesmo quando se trata das mais avançadas tecnologias.

 

O que os fundos de pensão deveriam fazer?

 

Quando um recurso se torna essencial para manutenção da competitividade, mas indiferente para o desenvolvimento da estratégia, os riscos que ele cria se tornam mais importantes do que as vantagens que ele proporciona.

 

A transformação digital representa vários riscos operacionais para um fundo de pensão, desde falhas nas tecnologias, obsolescência, interrupção na prestação de serviços, problemas com prestadores de serviços terceirizados até brechas na segurança.

 

Disrupturas nas soluções de TI podem paralisar um fundo de pensão ou uma empresa, impedindo-os de prestar seus serviços, produzir seus produtos ou se conectarem com seus participantes e clientes. Mesmo assim, poucos fizeram um trabalho profundo de identificação e prevenção de suas vulnerabilidades.

 

No longo prazo, porem, o maior risco que a TI representa para uma organização é mais prosaico do que as catástrofes. É simplesmente gastar demais com tecnologia e não ser capaz de separar o que é um investimento essencial do que é discricionário, desnecessário ou até contra-produtivo.

 

Estudos mostram, consistentemente, que grandes gastos corporativos com TI raramente se traduzem em resultados financeiros superiores, na verdade, geralmente o oposto é que é verdadeiro. Em 2022 uma firma de consultoria em tecnologia (Alineam) comparou os gastos de TI com os resultados financeiros de 7,5 mil grandes empresas americanas.

 

As que estavam no topo em performance eram as mais “munhecas”, ou seja, que menos gastavam. As 25 empresas com melhor desempenho econômico, gastavam em média 0,8% da receita em TI enquanto a média de gastos de todas as empresas era de 3,7%. 

 

A chave para o sucesso da maioria dos fundos de pensão, portanto, não é buscar agressivamente uma vantagem competitiva através das tecnologias digitais, mas sim gerenciar meticulosamente os custos e riscos das novas tecnologias.

 

Se o seu conselho deliberativo aprova gastos mais frugais com tecnologia, pensa de maneira mais pragmática sobre transformação digital e coloca maior ênfase nas estratégias em si mesmo, como meio para mudança do modelo de negócios da previdência complementar, seu fundo de pensão está na direção certa.

 

Grande abraço,

Eder.

 



Fonte: Esse texto foi adaptado do artigo "It Doesn't Matter", escrito por Nicholas G. Carr, publicado na Harward Business Review em 2003.

 


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