De Sāo Paulo, SP.
Na Grécia Antiga as decisões fundamentais eram tomadas pelos próprios cidadãos em grandes assembleias populares, num regime de representação conhecido como democracia direta, no qual o poder que emana do povo é por ele exercido diretamente.
Hoje em dia, na maior parte do mundo livre, vigora a democracia indireta, na qual o poder que emana do povo é exercido em seu nome através de representantes eleitos ou nomeados.
Ainda que existam referendos, plebiscitos e outros mecanismos para concretização da vontade popular, em termos práticos e por questões logísticas, na era analógica que vai chegando ao fim, seria impossível adotar a democracia direta para decidir questões da vida cotidiana.
Não existe um estádio grande o bastante para colocar toda a população de um país – em substituição às praças da Roma antiga - nem dá para parar um país inteiro visando realizar plebiscitos a todo momento.
Nos fundos de pensão, de forma similar ao que acontece nas organizações modernas de capital aberto, o sistema de governança foi construído com base na democracia indireta.
As empresas patrocinadoras dos fundos de pensão escolhem os membros que irão representá-las nos conselhos deliberativos e os participantes escolhem seus representantes através de eleições.
A delegação da representação dos participantes nos conselhos dos fundos de pensão, assim como ocorre nas democracias representativas, tem resultado num sistema no qual aqueles que detêm os meios de mobilização são os que efetivamente controlam o processo político.
Consequentemente, a maioria das decisões tende a privilegiar interesses de grupos específicos ao invés daqueles de toda a comunidade de participantes. Sob um sistema de governança baseado na representação direta, tal dominância poderia ser significativamente reduzida, senão eliminada.
Será que modificando as atuais instituições de governança dos fundos de pensão, seria pragmaticamente possível obter uma representação social à luz da antiga utopia? Seria a democracia direta capaz de fornecer, sozinha, uma igualdade substantiva na vontade dos participantes de um fundo de pensão?
Como funcionaria um sistema de governança baseado na democracia direta, construído em larga escala, com apoio de tecnologia digital e criptografia, para fazer valer a vontade geral dos participantes de um fundo de pensão?
Democracia representativa-direta nos conselhos
Numa democracia direta cada cidadão representa a si mesmo e vota diretamente com a comunidade, em questões relacionadas a sua governança. Isso contrasta totalmente com as formas de democracia representativa nas quais deputados e senadores votam em nome do nosso melhor interesse, sem antes nos consultar.
A ideia de democracia direta pressupõe que a autoridade é descentralizada e dispersa e as decisões são tomadas com base em uma governança coletiva direta. Mas isso não deve ser confundido com a inexistência de um aparato administrativo central com técnicos e profissionais que ainda devem existir para executar e facilitar a implementação das decisões que forem tomadas.
A democracia representativa-direta seria uma forma de evitar a supressão dos muitos pelos poucos - que ocorre (por definição) nas democracias representativas onde existe apenas um semblante de legitimidade. A democracia representativa-direta evitaria a institucionalização de estruturas políticas que defendem interesses de classes especificas, ajudaria a fortalecer a representação dos participantes nos conselhos deliberativos e daria aos fundos de pensão uma governança mais democrática.
Essa é uma questão cada vez mais importante diante da rápida marcha dos fundos de pensão em direção aos planos instituídos, nos quais o individuo passa a ser o foco em substituição ao antigo foco no seu vínculo com uma empresa.
Mas, como seria a democracia representativa-direta?
Se o objetivo de um sistema de democracia direta é refletir, tāo fielmente quanto possível, a vontade geral de toda a população de participantes, o que fazer com aqueles que não votam ou votam em branco e nulo?
Esses dois grupos costumam representar, sozinhos, cerca de 25% do eleitorado nas eleições presidenciais brasileiras e mais de 50% nas americanas, onde o voto é facultativo. Ademais, quem representaria os incapazes, os hospitalizados, os menores de idade ... a lista é longa.
Para resolver essa lacuna, seria necessário contar com uma governança representativa em dois níveis: o primeiro nível sendo a democracia direta e o segundo, a democracia representativa, daí o nome sugerido de democracia representativa-direta. Os dois níveis de governança se complementariam, seriam suficientes e mais eficazes.
As decisões seriam uma ponderação da vontade direta dos participantes com a vontade indireta expressa por seus representantes, em seu nome. Quanto mais pessoas votando diretamente, maior seria o peso de sua opinião e menor o peso da opinião dos representantes eleitos e vice-versa.
Idealmente, a melhor forma para definição de representantes dos participantes no segundo nível de governança, ao invés de eleição, seria por meio de um processo de seleção aleatória. Os participantes selecionados aleatoriamente ocupariam cadeiras nos conselhos a cada mandato e votariam de acordo com seus pontos de vista porque sua visão representaria a visão de tantas outras pessoas que pensam como eles e esse é o ponto da seleção aleatória.
Na prática, porém, a seleção aleatória acrescentaria obrigatoriedade na representatividade, o que não seria desejável a despeito do voto obrigatória ser, em alguns países como o Brasil, uma obrigação civil. Com os direitos vem as obrigações e quando as pessoas não votam, abre-se a porta para as decisões serem influenciadas, minando a democracia.
Seja como for, em benefício da simplificação, a seleção de representantes dos participantes nos conselhos, nesse segundo nível da governança, seguiria sendo feita por eleições, como ocorre atualmente e eventualmente, poderia ser incluído no processo a possibilidade de recall, dos representantes dos participantes
Essa proposta radical poderia ser implementada?
As soluções tecnológicas para adoção de um sistema de governança em dois níveis para representação dos participantes de um fundo de pensão conforme descrito aqui, já existem.
Há cerca de um ano, escrevi um artigo detalhando como funcionam os conceitos de ZKP – Zero Knowledge Proof e DID – Descentralized Digital Identities que estão por trás de sistemas de votação baseados na tecnologia do blockchain.
Quem tiver interesse em acessar o artigo pode usar esse link: aqui.
Antagonismos econômicos e interesses de classes sempre existirão. O que essa proposta de governança faria, seria limitar severamente seu poder de influência nos interesses dos participantes e na governança de um fundo de pensão.
Se as regras de uma sociedade são feitas por instituições políticas, então, aqueles que controlam essas instituições fazem as regras.
A BlackRock e o “Capitalismo dos Acionistas”
A A BlackRock, maior gestora de investimentos do mundo, liderada pelo CEO Larry Fink, defende o “Stakeholders Capitalism” (em português: “Capitalismo das Partes Interessadas”). Se é que existe um.
Em 2022 Fink escreveu na carta anual aos acionistas da BlackRock que:
“O Capitalismo das Partes Interessadas não tem a ver com política. Não tem a ver com ideologias. Não tem a ver com agendas sociais. É capitalismo impulsionado por relações mutuamente benéficas entre você, empregados, consumidores, fornecedores e comunidades das quais sua empresa depende para prosperar”.
Dois dias atrás a BlackRock divulgou que permitirá aos clientes que investem em ações no varejo (pessoas físicas), donos de US$ 2,6 trilhões em ativos sob sua gestão, que votem nas assembleias anuais de acionistas das empresas que fazem parte de seus portfolios de investimentos.
Em outras palavras, os pequenos investidores da BlackRock terão suas vozes ouvidas diretamente, ao invés de terem a BlackRock falando em seu nome – ou ter Fink dizendo aos CEOs das empresas o que seus clientes valorizam.
A decisão da BlackRock, porém, é incongruente com o compromisso da gestora com o Capitalismo das Partes Interessadas – Stakeholders Capitalism.
O Stakeholders Capitalism tem a ver com dar poder aos administradores de uma empresa para levarem em consideração no processo de tomada de decisões, todas as partes interessadas nessa empresa, todos os seus stakeholders – tendo o poder discricionário para assim fazer.
O voto dos acionistas, em contraste, é a forma mais pura de supremacia dos acionistas. É os acionistas tendo a última palavra acima de todas outras partes interessadas, todos os outros stakeholders. Seria o Capitalismo dos Acionistas e nāo o Capitalismo das Partes Interessadas.
A decisão da BlackRock de promover a democracia direta no voto dos acionistas, é blindar a gestora de críticas futuras de que estaria tentando influenciar, injustamente, a agenda política e o pensionamento das empresas na qual investe.
No ano passado a BlackRock foi um dos alvos preferenciais dos ataques à liderança das empresas que defendem a agenda ambiental, social e governança (ESG) no mundo corporativo.
As críticas não feriram apenas financeiramente a BlackRock. Fink parou de usar o. acrônimo ESG, apesar de ter sido um de seus maiores defensores no passado.
Ao colocar poder nas mãos dos investidores, Larry Fink pode alegar que são os acionistas, em última análise, que validam ou não a visão da BlackRock sobre sustentabilidade e aspectos ESG.
Se o compromisso da BlackRock com o Capitalismo dos Acionistas – pelo menos teoricamente - causar algum dano colateral, que assim seja.
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Não há dúvidas de que os sistemas de governança das corporações e dos fundos de pensão precisam evoluir na era digital e que novas tecnologias já existem para permitir isso.
A intenção aqui é levantar essa lebre e não, necessariamente, alegar que o sistema de democracia representativa-direta descrita nesse artigo é a melhor das soluções.
Grande abraço,
Eder.
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