terça-feira, 10 de janeiro de 2023

A HISTÓRIA DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL: O HOMEM QUE QUERIA ENSINAR AS MÁQUINAS A PENSAR – PARTE 1

 



De São Paulo, SP.

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TLDR – da origem acadêmica, que buscava entender o funcionamento da mente e explicar o pensamento, para o desenvolvimento de soluções com aplicações práticas, porque a inteligência artificial tem muito pouco a ver com inteligência.

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Douglas Hofstadter, junto com seus alunos de graduação da Universidade de Indiana, passou os últimos trinta anos escrevendo programas de computador que “pensam”, para tentar descobrir como nosso pensamento funciona.

Partiu de uma premissa simples: a mente é um software muito incomum, então, a melhor forma de entender como esse software funciona é você mesmo tentar escrevê-lo.

Ele diz que Inteligência Artificial é uma tentativa de entender a mente, talvez a melhor iniciativa nessa direção, mas tem muito pouco a ver com inteligência.

O interesse pelo pensamento

A ideia que mudou a vida de Hofstadter lhe ocorreu durante uma pausa ao longo do curso de PhD em física das partículas.

Desanimado com o encaminhamento da sua tese de doutorado na Universidade de Oregon e sentindo-se “profundamente perdido”, ele aproveitou as férias de 1972 para atravessar o país de carro.

Colocou as tralhas no seu Mercury 1956 e saiu em direção ao leste. Toda noite estacionava em algum lugar, perto de uma floresta ou de um lago, montava sua pequena barraca e lia sob a luz de uma lanterna.

Livre para divagar sobre qualquer assunto, escolheu refletir sobre o pensamento em si. Aos 14 anos Hofstadter se tornou obcecado pela relação entre mente e matéria, quando descobriu que sua irmã mais nova, Molly, não podia entender a linguagem - devido a algum dano neurológico causado no nascimento, porém, nunca diagnosticado.

Descrito em 1890 por William James, um dos pais da psicologia, como “uma das coisas mais misteriosas do mundo”: Como pode a consciência ser algo físico? Como pode algumas gramas de massa cinzenta dar origem aos pensamentos e ao nosso próprio eu?

Vagando de carro pelos EUA, Hofstadter pensou ter encontrado onde buscar a resposta. Entre todas as explicações possíveis, a resposta estaria no cerne da matemática, de se provar matematicamente o pensamento.

Inspirou-se no Austríaco Kurt Gödel, considerado o mais importante filosofo depois de Aristóteles, cuja teoria da incompletude de 1931 revolucionou a matemática e inspirou gênios como John von Newman – teoria dos jogos – e Alan Turing – precursor dos computadores.

A teoria da incompletude de Gödel usa a matemática para provar que a matemática não consegue ser sempre comprovada por meio de cálculos e que em qualquer sistema há afirmações que são verdadeiras, mas que não podem ser comprovadas. O que Hofstadter queria mostrar sobre consciência tinha a ver com aquele mesmo tipo de lógica.

Numa tarde ele se sentou e começou a esboçar o raciocínio numa carta para um amigo. Depois de escrever 30 páginas decidiu não enviar, queria deixar as ideias germinarem um pouco mais.

Sete anos depois, as ideias não apenas haviam germinado, mas se transformado num livro de quase 1.5 kg e 777 págs. chamado “Gödel, Escher, Bach: An Eternal Golden Braid” (em português: Gödel, Escher, Bach: um entrelaçamento de Gênios Brilhantes). Aos 35 anos e autor de primeira viagem, o livro escrito em1979 rendeu a Hofstadter o Prêmio Pulitzer de 1980.

GEB, como o livro ficou conhecido, causou sensação. Martin Gardner, colunista da Scientific American, de modo inusual devotou toda sua coluna de julho de 1979 para falar de um único livro, escreveu:

“A cada poucas décadas, um autor desconhecido surge com um livro de tal profundidade, clareza, abrangência, beleza, inteligência e originalidade, que é imediatamente reconhecido como o maior evento literário da época”

GED não foi apenas um livro influente, mas um livro do futuro. Começou a ser chamado de bíblia da inteligência artificial, um campo nascente na interseção da computação, ciência cognitiva, neurociência e psicologia. Hofstadter e sua busca por desvendar a “estrutura secreta de softwares de nossa mente”, influenciou toda uma geração de estudantes no campo da IA.  

A mudança de foco das pesquisas, alterou o rumo da IA

Então, a IA mudou, mas Hofstadter não mudou e acabou desparecendo.

GED surgiu num ponto de inflexão na história da IA, quando o financiamento da pesquisa básica de longo prazo estava secando nos EUA e o foco acadêmico estava se voltando para sistemas e soluções com aplicações práticas.

Em1969 o congresso americano aprovou a Emenda Mansfield, uma lei determinado que o departamento de defesa só desenvolvesse projetos de pesquisa avançada que tivessem uma “relação direta e clara com alguma função ou operação militar específica”. Ou seja, que tivesse algum benefício militar direto.

Em meados da década de 70 o governo estava se perguntando exatamente quais melhorias concretas na segurança nacional haviam sido obtidas após 10 anos e US$ 50 milhões investidos em estudos exploratórios em IA.

No começo dos nãos 80 a pressão atingiu o máximo e a IA - que havia começado com o objetivo de responder a famosa pergunta de Alan Turing: “Podem as máquinas pensar?” – começou a amadurecer ou mudar, dependendo do ponto de vista, transformando-se num subcampo da engenharia de softwares, voltada para aplicações reais.

Cada vez mais, os trabalhos passaram a ser desenvolvidos ao longo de horizontes de tempo curtos, frequentemente tendo um comprador específico em mente. Tanto no meio militar como no civil, os produtos focavam em nichos e sistemas especializados.

Em seu livro, Hofstadter clamava por uma abordagem de IA menos preocupada em solucionar problemas humanos de forma inteligente e mais voltada para o entendimento da inteligência humana.

Precisamente naquele momento, aquela abordagem havia produzido tão poucos frutos e começou a ser abandonada. Sua estrela foi se apagando rapidamente e os holofotes se desviaram para o novo imperativo: fazer as máquinas funcionarem de qualquer maneira possível, sem nenhuma preocupação com a plausibilidade psicológica.

Abandonar a inteligência foi o que fez a IA avançar

“Pouquíssimas pessoas estão interessadas em como a inteligência humana funciona”, diz Hofstadter. “É nisso que estamos interessados – no que é o pensamento?”

Veja o Deep Blue, o supercomputador da IBM que venceu Garry Kasparov no jogo de xadrez, venceu na força bruta. O que permitiu ao Deep Blue ganhar do melhor jogador do mundo foi sua capacidade de processamento. Era capaz de avaliar até 330 milhões de posições por segundo enquanto Kasparov podia avaliar apenas algumas dezenas antes de tomar uma decisão.

Mas para Hofstadter o que adianta realizar uma tarefa se a vitória não nos ensina nada? “Okay, Deep Blue joga xadrez muito bem – e daí?”, diz ele. “Isso nos diz alguma coisa sobre como nós jogamos xadrez? Não. Diz como Kasparov enxerga e entende um tabuleiro de xadrez? Também não”

Em 2011 escrevi sobre O custo cognitivo da expertise e os especialistas em previdência complementar. Leia o post se quiser saber por que é impossível qualquer computador replicar a habilidade dos grandes mestres de xadrez, sem entender o cérebro humano.

Uma solução de IA que não procurasse responder essas questões – por mais impressionante que fosse – seria um desvio para Hofstadter e ele não queria se envolver nessa malandragem. “Eu não quero estar envolvido em fazer o comportamento de um programa sofisticado se passar por inteligente, quando eu sei que não tem nada de inteligente nisso”, declarou ele.   

Do início dos anos 80 até nossos dias, o setor de IA saltou de algumas centenas de bilhões para trilhões de dólares. O valor de mercado da IBM aumentou para US$ 18 bilhões em 1997, depois que o Deep Blue venceu Kasparov. Quanto mais a IA se tornava uma disciplina de engenharia de softwares, mais resultados ia alcançando.

Hoje, com aplicações construídas a partir de bases técnicas que pouco ou nada tem a ver com o pensamento, a IA vive anos dourados. Suas soluções permeiam a indústria de máquinas pesadas, transporte, finanças. Funções básicas do Google usam IA, assim como as recomendações da Netflix, Siri, drones autônomos, carros autônomos etc.

“A tentativa do homem voar foi bem sucedida no momento que Santos Dumont e outros pararam de imitar os pássaros e começaram a aprender sobre aerodinâmica”, escreveram Stuart Russel e Peter Norvig no livro Artificial Intelligence: A Modern Approach.

A inteligência artificial começou a funcionar quando se livrou dos humanos como modelo e só avançou porque se livrou deles. A essência da analogia é:

Aviões não batem suas asas para voar; por que deveriam os computadores pensar?


Será que a abordagem atual, nos levará um dia à verdadeira IA?

Essa é a pergunta de US$ 1 milhão: será que a abordagem por trás de uma inteligência artificial baseada em big data e totalmente construída a partir de engenharia de softwares, mas que pouco tem a ver com o funcionamento da mente, nos levará até onde queremos chegar?

Como vamos criar um mecanismo de busca na Internet que entenda o que procura, se não sabemos como nós entendemos as coisas?

Talvez, como escreveram Russel e Norvig no capítulo final de seu livro, a IA se tornou parecida com aquele cara que que tenta chegar na lua subindo numa arvore: “Ele pode dizer que está progredindo consistentemente ao longo do caminho, até chegar no topo da árvore”.

Os computadores atuais ainda têm dificuldade para reconhecer uma simples letra A escrita à mão. Essa tarefa é tão difícil para eles que é usada como base do CAPTCHA – Completely Aumotaded Public Turing tests to tell Computers and Humans Apart, aquele teste que faz você ler letras distorcidas e digitar os caracteres num campo antes de ter acesso, por exemplo, a um website.

Na cabeça de Hofstadter isso não é surpresa nenhuma. Para saber o que todos os A tem em comum, escreveu ele num artigo de 1982, seria preciso “entender a natureza fluida das categorias mentais” e isso, diz ele, é a essência da inteligência humana.

Ele gosta de dizer que “cognição é reconhecimento”. Ele descreve “ver como”, como sendo uma parte essencial do ato cognitivo. Você vê algumas linhas no papel como sendo “um A”, você vê uns pedaços de madeira como sendo “uma mesa”, o estilo de vestir e agir de um jovem como “hipster” e por aí vai.

É isso que chamamos de entender, mas afinal como nosso entendimento funciona? Por três décadas Hofstadter e seus alunos vem tentando descobrir isso construindo “modelos computacionais de nosso mecanismo fundamental de funcionamento do pensamento”.

A tese de Hofstadter é que nosso pensamento funciona por analogia, conforme descreveu no seu novo livro Surfaces and Essences, escrito por Emmanuel Sander.


“Preste atenção como conversamos”, diz ele. “Você vai notar, para sua surpresa, que o processo de analogia se repete indefinidamente”. Alguém diz uma coisa, que te faz lembrar de outra; você diz uma coisa, que faz a outra pessoa lembrar de outra coisa – é isso que chamamos de conversa.

Hofstadter argumenta que a cada passo, a cada analogia, acontece um salto mental tão incrivelmente complexo que é um milagre computacional.

De alguma forma o cérebro é capaz de desprezar qualquer detalhe superficialmente irrelevante nesse processo de analogias e extrair a sua essência, recuperando do seu próprio repertório de ideias e experiências, a história ou observação que melhor se relaciona ao que está sendo dito.

“Por trás de frases inocentes – tipo: Ah sim, isso foi exatamente o que aconteceu comigo - está escondido todo o mistério da mente humana”, diz ele.

Poucos anos após a publicação de GED o desenvolvimento da inteligência artificial foi para um lado e Hofstadter foi para o outro. Se você for ler sobre IA hoje em dia raramente encontrará menções a Hofstadter.

Nas mais de 1.000 páginas do livro americano AI: A Modern Approach, não há uma única menção a Hofstadter e muitos jovens fãs de GED ficam surpresos quando descobrem que o autor ainda está vivo.

Quando todo mundo envolvido com IA começou a construir soluções e produtos, Hofstadter e sua equipe pacientemente, “sistematicamente, brilhantemente”, deixaram a luz dos holofotes para se concentrar no verdadeiro problema, comenta o amigo e filosofo Daniel Dennet.

“Muito poucos estão interessados em como a inteligência humana funciona”, pondera Hofstadter. “É nisso que estamos interessados – o que é o pensamento? e não vamos nos desviar dessa pergunta.

Hofstadter vai descobrir a resposta? A abordagem atual, nos levará um dia à verdadeira IA? “Quem sabe”, diz o próprio Hofstadter. “Quem sabe o que vai acontecer?”

Quais as melhores abordagens em inteligência artificial – na genuína inteligência artificial, como ela agora a chama?

Difícil dizer, mas não foi preciso imitar os pássaros para o homem voar e hoje voamos mais alto e mais rápido do que qualquer pássaro que a natureza jamais inventou.



Talvez esse precedente seja um indício do que pode acontecer com a evolução da inteligência artificial, mas se o caminho para uma inteligência artificial desconectada da verdadeira essência humana vai nos fazer chegar até lá .... só o tempo dirá.


A “História da Inteligência Artificial - Parte 2” pode nos dar uma pista.

 

Grande abraço,

Eder.

 

 

Fonte: The Man Who Would Teach Machines to Think, escrito por James Somers


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