De São Paulo, SP.
Minha praia é a indústria global de fundos de pensão, na qual venho atuando ao longo de toda minha vida profissional. Como um observador privilegiado que assiste a um experimento, vejo tudo se modificando em câmera lenta diante dos meus próprios olhos.
Os pilares de um sistema que vigorou por todo o século XX já não conseguem mais sustentar a ponte para o amanhã. Sinais claros de fadiga foram detectados já na primeira década do século XXI e todos percebemos.
Aqueles sinais foram se amplificando, a quantidade de fundos de pensão foi diminuindo (no mundo todo, diga-se de passagem) e na medida que avançamos século adentro, as transformações sócio-tecnológicas vão impondo ao nosso modelo de negócios uma verdadeira destruição criativa.
Ainda sem uma visão clara do que vem pela frente, o cenário fica turbulento, socialmente confuso, instável, inseguro, desigual. Típico dos períodos recessivos nos quais o mundo já foi lançado inúmeras vezes antes.
Porém, o ciclo de difusão das revoluções tecnológicas nos ensina que cenários assim são sucedidos por eras de prosperidade e anos dourados. Nessa continuação da história podemos antever a criação construtiva de um outro modelo para aquilo que hoje conhecemos por fundos de pensão.
As revoluções tecnológicas não surgem do nada, os elementos indutores geralmente já se mostravam presentes por algum tempo. Os grandes computadores da IBM existiam desde a II Guerra, mas a revolução tecnológica só ocorreu com a invenção dos microchips pela Intel em 1971. Foi isso que tornou possível os celulares, os PC e os tablets que temos hoje.
Então, convido você a olhar em volta. Vamos tentar enxergar os elementos que transformarão os fundos de pensão da mesma forma que o microchip transformou o que um dia chamamos de computadores.
Finanças descentralizadas ou DeFi -Descentralized Finance
Descentralized Finance ou simplesmente DeFi são softwares financeiros com fontes abertas de programação que rodam em redes públicas de blockchain. Não estão integrados no sistema bancário, não estão integrados hoje na gestão de portfolios nem nos meios de pagamentos eletrônicos (tipo Visa) ou no Swift ou em qualquer outra infraestrutura financeira na qual as instituições atuais operam.
São toda uma nova camada de infraestrutura financeira e softwares que estão redesenhando as funcionalidades, classes de ativos e serviços financeiros que existem hoje e estão fazendo isso em redes de blockchains globalmente descentralizadas.
Uma nova economia está surgindo no mundo digital de forma essencialmente separada da atual, com produtos e soluções digitais como a emissão de dívida com colateral, troca de risco com swaps, compra e venda de proteção com opções, trade de futuros, criação e operação de ativos sintéticos, representação de ativos reais tipo ouro em blockchain, streaming de dinheiro permitindo coisas como o pagamento de salário por segundo ...
Como será a liquidez e a interação de todos esses novos instrumentos digitais com a economia tradicional? Serão integrados? Serão conectados nos bancos comerciais? A interface se dará diretamente com os tomadores de empréstimos? Tudo será completamente separado? Tudo irá convergir?
De certa forma, o que vem acontecendo hoje não é propriamente uma convergência com o sistema financeiro tradicional. O que estamos vendo são os ativos que existem no mundo real entrando no mundo das finanças descentralizadas.
Se você quiser ter acesso hoje aos instrumentos e soluções que estão surgindo no mundo das finanças descentralizadas (DeFi) você estará limitado. Precisará adquirir criptoativos e usá-los para ter acesso a todos esses novos produtos financeiros.
No entanto, a maioria das pessoas não precisaria fazer isso porque não usaria os criptoativos para nenhuma outra coisa hoje. Além disso, muitos não teriam a liquidez necessária para comprá-los e prefeririam usar nessa nova economia os ativos que possuem hoje. No caso de um individuo, ele gostaria de usar sua casa como colateral em um empréstimo. Uma empresa, teria interesse em usar os recebíveis.
Conectar esses ativos tradicionais com as soluções de DeFi permitirá satisfazer as necessidades de muitas pessoas e negócios que não são atendidos pelo sistema financeiro que está aí, trazendo valor agregado para eles. Nesses casos, a convergência entre o sistema financeiro atual e o mundo da DeFi, será inovador.
Numa analogia com comercio eletrônico e pagamentos via dispositivos moveis, você não enfia dinheiro no seu celular para pagar uma corrida de Uber. Para pagar com seu cartão de crédito em um ponto de venda, você não usa o celular e depende das maquininhas. São meios totalmente diferentes de pagamento, não são integrados. As soluções de DeFi tem tudo para derrubar essas barreiras principalmente com a chegada da moeda digital ou CBDC (mais: aqui).
Regulação de emissão, custodia e transações na economia digital
Com o desenvolvimento e amadurecimento, a criptoeconomia que já conta com bilhões de dólares em ativos e moedas digitais, começa a tangenciar o sistema financeiro tradicional. Surge, inevitavelmente então, a questão de como resolver o embate entre a necessidade de registro, regulação e segurança das transações financeiras e a característica descentralizada que está por trás dos novos instrumentos financeiros digitais?
As soluções no mundo da DeFi são construídas com base em protocolos e aplicações descentralizadas (dapps). Criadas em plataformas de blockchain, permitem que as pessoas realizem transações financeiras sem a necessidade de identificação e sem um intermediário financeiro - tipo bancos ou administradoras de cartões. Mais ainda, dispensam a existência de uma autoridade central – tipo CVM e Banco Central.
Então, como tratar e assegurar compliance dos fluxos de dinheiro e ativos digitais feitos através das redes públicas de blockchain baseados em protocolos descentralizados, com regras contra lavagem de dinheiro (AML) como a regra “conheça seu cliente” (KYC) etc.?
Steven Becker, Presidente e COO da MakerDAO (1) explicou o caminho com uma analogia com o oceano que faz todo sentido. A analogia usada por Becker, descrita logo abaixo, mostrou-se eficaz no caso da fuga de Carlos Ghosn CEO da Nissan – Renault em 30 de dezembro de 2019. Promotores americanos descobriram na semana passada que o filho de Ghosn enviou 63 bitcoins para Michael e Peter Taylor, pai e filho que ajudaram a retira-lo do Japão e leva-lo para o Líbano onde está foragido. As sete transações totalizando US$ 500 mil foram confirmadas pela trader de criptomoedas Coinbase onde Ghosn e Taylor criaram carteiras digitais. Os Taylor foram rastreados após transformarem os bitcoins em dólares por meio do sistema financeiro tradicional.
(1) MakerDAO é um projeto criado em 2014, com fonte aberta e construído em cima da plataforma Ethereum, que permite aos usuários criarem criptomoedas. É uma das maiores aplicações descentralizadas (dapps) que roda na rede Ethereum.
O que está sendo construído no mundo DeFi é como o oceano, ninguém consegue regular nem controlar todo o oceano. O que se pode fazer é regular os portos, controlar as rotas marítimas, supervisionar as atividades nesse oceano. A filosofia de descentralização e a necessidade de regulação vão convergir por aí e diga-se de passagem, esse tipo de controle é benéfico para todos porque protege todo mundo. Segurança e confiabilidade são fundamentais para toda troca financeira em qualquer espaço.
Isso é particularmente importante no campo da poupança para o futuro, que nos fundos de pensão envolve ainda a gestão de recursos de terceiros. As autoridades sabem que estamos operando sob um novo paradigma e reconhecem que a essência de um livre mercado é a descentralização. Precisam agora alinhar essas duas pontas.
Por onde o DeFi deverá avançar
Da mesma forma que o comércio eletrônico foi o grande impulsionador da Internet, as soluções da DeFi deverão ganhar tração através das grandes organizações do varejo e suas cadeias de suprimentos.
É na cadeia de suprimentos que se encontram os verdadeiros beneficiários da massiva proposição de valor do ecossistema de blockchain. O potencial que DeFi representa é gigantesco se considerarmos que a logística da cadeia de suprimentos é que faz rodar a economia global inteira.
A economia global transita por um espaço onde a ideia de identidade e confiança entre as partes em uma transação que transfere valores é crucial e onde liquidez é tratada como “premium”.
Enquanto muitos consideram que o desenvolvimento de DeFi ocorrerá pela digitalização de títulos e ações de grandes empresas e falam de stablecoins, o tsunami chegará mesmo é por meio da cadeia global de suprimentos, que até aqui vem se mantendo discreta.
As operações globais B2B envolvem transações financeiras anuais de cerca de US$ 180 trilhões. Se a criptoeconomia for capaz de capturar uma pequena fração desses pagamentos, alavancará o ecossistema de criptoativos em vários graus de magnitude.
Existem hoje cerca de 200 mil pessoas usando aplicativos de DeFi, basicamente para trocar e emprestar capital de modo especulativo. Porém, há muito interesse no tipo de retorno que os criptoativos e as classes de ativos digitais podem proporcionar como investimentos.
A DeFi é hoje uma ideia cujo valor é muito mais intuitivo do que intrínseco, por isso surgem os especuladores que aparecem em todo mercado nascente. Estamos num ponto de inflexão em que vamos nos dando conta de que a utilidade intrínseca e funcionalidade desse novo paradigma vai além da especulação.
Investimentos tem a ver fundamentalmente com valor dos ativos e ainda é um pouco difícil relacionar valor ao espaço do blockchain, às soluções de DeFi e à economia dos tokens (como a criptoeconomia também é conhecida). Muitos a associam a algo obscuro, antiético, ilegal, arriscado.
Os fundos mútuos surgiram pela primeira vez como investimento inovador em 1927 e muitos consideraram a ideia uma fraude, um esquema para enganar investidores. Isso sempre acontece no mundo financeiro, por isso é importante entender em que ponto do ciclo de inovação financeira nós estamos e ter ciência que é um ciclo.
A capacidade de tratar os ativos como blocos de lego é extraordinariamente importante e essa natureza é que levará ao surgimento de soluções inimagináveis no campo dos investimentos.
Apenas três anos atrás não existia o termo DeFi e coisas como oferta inicial de criptomoedas (ICO), bitcoin e projetos estavam começando a surgir.
Nesse momento da história, tentar prever quais setores ganharão, quais perderão e o que acontecerá com os fundos de pensão com a chegada da DeFi equivale a ter pedido para alguém prever nos anos 90 o que aconteceria com a Internet no futuro.
Nos anos 90 a revista New Yorker, tentando projetar o futuro da Internet, publicou um cartoon que mostrava um cachorro surfando no computador dizendo: “na Internet ninguém sabe que você é um cachorro”.
Passados quase trinta anos a Internet se mostrou exatamente o oposto daquela visão. Anonimato, liberdade de expressão, trânsito de informações confiáveis, essa era a previsão do futuro da Internet na época. Em 2020 a Internet é um lugar que as pessoas frequentam para projetar a imagem, a identidade e o ego em troca de receita de anunciantes. Entregam seus dados a cada clique, 100% o oposto daquela imagem.
A tentativa da New Yorker de prever o futuro da Internet mostrou apenas o quão difícil é antecipar a história, mas não impediu que ela mudasse extraordinariamente nossas vidas. Assim foi com a Internet, assim será com blockchain, a criptoeconomia e a DeFi.
Grande abraço,
Eder.
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