segunda-feira, 6 de julho de 2020
DECISÕES RUINS PODEM TER CONSEQUENCIAS FATAIS: O QUE CONSELHEIROS DE FUNDOS DE PENSÃO PODEM APRENDER COM A NASA
Credito de Imagem: NASA
De São Paulo, SP.
Entender os fatores que nos levam a tomar as decisões que tomamos, tem alcance e implicações importantes.Tomamos decisões a toda hora, várias delas por dia. Algumas são banais e sem consequências para ninguém a não ser nós próprios. Decidir se vou tomar um sorvete de manga ou de chocolate, se vou colocar mais ou menos sal na minha comida, se vou comprar ou não uma blusa, são bons exemplos disso.
Existem decisões, porém, que são mais complexas, afetam outras pessoas e causam impactos duradouros, profundos e sérios. As decisões tomadas por conselheiros de fundos de pensão se encaixam nesse segundo caso. Possuem desdobramentos, presentes e futuros, sobre a vida e o destino de milhares de pessoas sendo, portanto, decisões que carregam grande responsabilidade. Envolvem questões complexas e não intuitivas, como gestão de riscos, projeções atuariais, alocações de investimentos e economia.
O que vou contar aqui me fez refletir bastante sobre a importância de compreendermos melhor nosso processo de tomada de decisões. Explica, de certa forma, por quê precisamos imprimir uma dinâmica diferente na forma como os assuntos são apresentados, discutidos e decididos nas inúmeras reuniões dos nossos conselhos deliberativos.
A história começa no dia 16 de janeiro de 2003 e aconteceu com a missão nº STS-107 da NASA que lançou ao espaço o ônibus espacial Columbia. Foi a 27ª vez que o Columbia subiu e se estabilizou na orbita baixa da terra, onde ficou por 16 dias antes de retornar do espaço.
Aprendi com meu irmão mais velho, coronel da aeronáutica que trabalhou por muitos anos no programa espacial brasileiro, que quando um foguete sobe ele é acompanhado por telemetria. Isso permite saber se está subindo dentro da trajetória prevista. Em lançamentos não tripulados - por exemplo, para colocar um satélite em orbita - um desvio muito grande da trajetória pode levar o foguete a cair em áreas habitadas. Para evitar isso, o foguete (não tripulado) é destruído antes. O cara que apertava o botão para destruir os foguetes no Centro de Lançamento de Alcântara - MA, sim, era exatamente o meu irmão.
Mas ele me ensinou um pouco mais. Ele me disse, também, que os sinais de telemetria são muito fracos e sofrem interferência logo nos primeiros segundos em que o foguete está saindo da plataforma de lançamento. Por isso, são instaladas câmeras no foguete e na plataforma, permitindo que o centro de controle localizado a quilômetros de distância, seja capaz de acompanhar visualmente os primeiros instantes da subida.
A telemetria e câmeras também estão presentes nos lançamentos tripulados, mas servem, nesse caso, para garantir a segurança da tripulação. No primeiro dia depois do lançamento do Columbia, seguindo protocolos de rotina, a equipe da NASA revisou as gravações. Imagens de uma câmera montada no tanque de combustível do foguete chamaram a atenção.
Aos 82 segundos do lançamento, os técnicos notaram um pedaço de espuma isolante se soltando. A espuma isolante amortece a trepidação causada pelo forte empuxo de subida. Colocada entre o suporte que prende o ônibus espacial e o tanque de combustível do foguete, ela evita o atrito direto de ferro com ferro e impede a perfuração do tanque pelo suporte.
A imagem da gravação mostrou o pedaço de espuma isolante atingindo a borda externa da asa esquerda do ônibus espacial a uma velocidade de 28.968 km/hora. O impacto danificou os ladrilhos de cerâmica que cobrem a asa e servem para dissipar o calor gerado pelo atrito com a atmosfera durante a subida e a descida.
Mesmo analisando a gravação quadro a quadro, foi impossível para os técnicos avaliarem o dano exato causado na asa. O quadro nº 4924 do filme (frame 4924 em inglês) mostra uma imagem congelada de algo que aconteceu a uma velocidade nove vezes mais rápido do que uma bala de revolver.
O desprendimento de espuma isolante não era novidade, já havia ocorrido em quatro lançamentos anteriores e essa foi uma das razões para haver uma câmera exatamente ali. O fenômeno tinha até um nome, era chamado de SOFI – Spray on Foam Insulation.
No espaço não existe atrito, nenhum problema enquanto o Columbia estivesse em orbita. O que os técnicos não sabiam dizer é como o ônibus espacial reagiria durante a reentrada na atmosfera, no caminho de retorno a Terra. A NASA tinha três opções: (i) os astronautas podiam fazer uma caminhada no espaço e inspecionar visualmente a asa para avaliar a extensão do dano; (ii) poderia lançar outro ônibus espacial para trazer a tripulação de volta em segurança; ou (iii) poderia arriscar a reentrada.
Os engenheiros da Boeing Corp., que construiram o ônibus espacial, foram chamados e se reuniram com os técnicos da NASA. Fizeram uma apresentação com 28 slides de PowerPoint. Apresentaram dados mostrando que os ladrilhos de cerâmica na asa eram capazes de tolerar impactos de espuma isolante, mas que essa conclusão se baseava em condições de testes feitos com pedaços de espuma 600 vezes menores do que aquele que havia atingido a asa do Columbia. Esse foi o slide que os engenheiros escolheram para ilustrar esse ponto.
Terminada a apresentação, os engenheiros da Boeing consideraram ter comunicado os potenciais riscos. Os gerentes da NASA entenderam que os engenheiros não sabiam exatamente o que poderia acontecer, mas que todos os dados apontavam para um dano que não era suficiente para colocar em perigo a vida dos astronautas. As outras opções foram rejeitadas e seguiram em frente com uma reentrada normal na atmosfera.
O pouso do Columbia estava previsto para 09:16am (EST) do dia 1º de fevereiro de 2003. Pouco antes das 9:00am o ônibus espacial despontou a 61.170 metros acima de Dallas – EUA. Descendo a uma velocidade 18 vezes maior do que a velocidade do som, as medidas mostraram temperaturas da asa esquerda absurdamente elevadas e de repente, pararam de ser transmitidas. A medida da pressão dos pneus abaixo da asa esquerda também foi interrompida, assim como a comunicação com a tripulação.
Às 9:12am, quando o Columbia deveria estar se aproximando da cabeceira da pista de pouso, o centro de controle começou a receber telefonemas dos moradores de Dallas reportando terem visto o ônibus espacial se desintegrando O Columbia foi perdido e com ele se foram sete astronautas, o mais velho tinha 48 anos de idade.
As investigações, que começaram imediatamente após o ocorrido, concluíram que a causa do acidente estava bem clara: “o buraco em um ladrilho de cerâmica na asa esquerda, causado pela espuma isolante que se desprendeu, permitiu que a asa superaquecesse a ponto de levar a desintegração de toda a estrutura do ônibus”.
A pergunta que precisava ser respondida era simples: Dado que o impacto da espuma havia ocorrido com uma força maciçamente superior às condições de testes, por que a NASA procedeu com a reentrada?
Juntou-se às investigações o Prof. Edward Tufte, especialista em comunicação da Universidade de Yale. Ele revisou os slides da apresentação que os engenheiros da Boeing fizeram na reunião com os técnicos da NASA. O que ele conclui foi profundamente trágico, o problema estava exatamente naquele slide usado como base de decisão.
1º) Título: o slide tinha um título que transmitia um conforto ilusório, alegando que os dados dos testes apontavam para a cerâmica sendo capaz de suportar a pancada da espuma. Não era isso que acontecia, mas a presença de um título escrito com o maior tamanho de letra no slide, fez isso parecer o ponto mais saliente (importante), como um sumario se sobressaindo aos demais pontos do slide. Isso ajudou a levar a mensagem que a Boeing estava tentando transmitir, a se perder quase que imediatamente.
2º) Bullets soltos: o slide contém quatro diferentes bullets sem nenhuma explicação sobre o que eles significam. Isso deixa a interpretação a cargo do leitor. Seria o nº 1 o principal bullet? Será que os bullets vão ficando menos ou mais importantes? A diminuição no tamanho da fonte também não ajudou. No total, os recuos dos bullets criaram seis hierarquias na cabeça dos leitores. Isso induziu os gerentes da NASA a criarem uma hierarquia de importância: o texto abaixo dos bullets mais recuados e com fonte menor foi ignorado. Quando na verdade, era ali que a informação contraditória (e mais importante) havia sido colocada - o numero 4 mostrado em vermelho.
3º) Excesso de texto: há uma quantidade enorme de texto, mais de 100 palavras e símbolos na página. Duas palavras, “SOFI” e “ramp” significam a mesma coisa: a espuma isolante. Termos vagos foram usados. Suficiente (sufficient) foi usado uma vez, significativo ou significativamente (significant ou significantly) foram usados cinco vezes sem pouco ou nenhum dado quantitativo. Isso fez com que muitas questões fossem deixadas em aberto, para interpretação da audiência. Quanto é significativo? Trata-se de significância estatística ou significa alguma outra coisa?
4º) O fator isoladamente mais importante: Finalmente, o fato mais relevante, a informação de que o impacto tinha ocorrido com uma força extremamente superior às condições dos testes, ficou escondido bem na parte de baixo do slide. Doze pequenas palavras que só seriam alcançadas após a audiência passar por mais de 100 palavras para chegar lá. Se é que o leitor continuasse lendo ate chegar naquele ponto. No meio do slide, em letras pequeninas, está a afirmação de que a espuma pode, sim, danificar a cerâmica. A afirmação está no menor tamanho de fonte do slide, solta, perdida.
Imagine que os engenheiros da Boeing tivessem mostrado um slide só com uma frase: “a espuma que bateu na asa era 600 vezes maior do que o tamanho usado nos testes”. Talvez a NASA tivesse escutado. Talvez tivessem feito os astronautas caminhar no espaço para inspecionar a asa. Talvez não tivessem tentado a reentrada.
Conclusões úteis para reuniões de conselhos de fundos de pensão
O relatório da NASA sobre o acidente apontou como causas tanto aspectos técnicos como fatores humanos. O relatório criticou o excesso de confiança no PowerPoint, sintetizado nesse trecho aqui:
“O Conselho vê o uso endêmico de slides de PowerPoint nos briefings e instruções, no lugar dos relatórios técnicos, como uma ilustração dos métodos problemáticos de comunicação técnica dentro da NASA”
O relatório completo do Prof. Edward Tufte é uma leitura fascinante e deveria estar na mesinha de cabeceira de todo conselheiro de fundo de pensão. Desde que foi liberado para o publico em 1987, o uso do PowerPoint cresceu exponencialmente. Estima-se que atualmente cerca de 30 milhões de apresentações de PowerPoint sejam feitas por dia.
As críticas acadêmicas ao PowerPoint mostram que seu uso inibe o pensamento critico (artigo do The Guardian: aqui). Jeff Bezos aboliu seu uso nas reuniões da Amazon. (artigo da Forbes: aqui). Digitar texto em uma tela para depois ler em voz alta não conta como método de ensino da mesma forma que uma audiência ler texto em uma tela não conta como aprendizado. Em tempos de Covid-19, quando reuniões, aulas e treinamentos são 100% virtuais e a maioria com uso de PowerPoint, isso é mais importante do que nunca.
Na próxima vez que o conselho deliberativo do seu fundo de pensão for tomar uma decisão importante, lembre-se do Columbia. Reflita sobre os dados e conclusões que estão sendo apresentados. Pense na mensagem que se está querendo transmitir e não deixe que ela se perca em meio ao texto. Confronte o que foi resumido na apresentação com os dados do material recebido aos conselheiros antes da reunião. Depois da apresentação, submeta o assunto a uma ampla discussão antes da deliberação d assunto. Provoque cada conselheiro a se manifestar. Ouça o contraditório, não se deixe levar pelo "Group Thinking" (quando todos pensam igual). Enfim, evite que a reunião seja apenas um show de PowerPoint, sem discussão, sem troca deixei-as, sem pensamento critico.
Como o caso do Columbia mostrou, julgamentos errados e decisões ruins podem matar no curto prazo. Muitas decisões tomadas nos conselhos dos fundos de pensão vão ter desdobramentos no longo prazo, mas isso não significa que suas consequências não possam ser igualmente fatais ...
Talvez eu inclua esse caso real na segunda edição do meu livro “Revolucionando os Conselhos dos Fundos de Pensão”. O lançamento oficial não precisou de um slide de PowerPoint para ser postergado – ainda que incompletas, considerei suficientes as informações disponíveis no final de março sobre os riscos do Covid-19 para tomar essa decisão. Assim que puder farei a noite de autógrafos. Até lá, para quem quiser ler o livro já está “na praça” (link da loja virtual da editora: aqui).
Grande abraço,
Eder.
Fonte: Adaptado do artigo "Death by PowerPoint: the slide that killed seven people", escrito por James Thomas.
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