De São Paulo, SP.
Na semana passada participei de mais dois webcasts, em meio a tantos outros que tenho assistido, com discussões bastante interessantes sobre o desenvolvimento, políticas e implementação de CBDC em países da Europa, Américas e na região da Ásia-Pacífico.
Para aqueles que não estão acompanhando as discussões, CBDC é o acrônimo em inglês para Central Bank Digital Currency e vem sendo usado para se referir a moeda digital de um país.
Dados do BIS (1) mostram que mais de 80% dos bancos centrais ao redor do mundo estão estudando de alguma forma a implantação de uma moeda digital, incluindo nossos amigos aqui do BACEN em Brasília.
(1) Wikipédia: BIS – Bank for International Settlements ou Banco de Compensações Internacionais é uma organização multilateral responsável pela supervisão bancária. Visa promover a cooperação entre os bancos centrais e outras agências na busca de estabilidade monetária e financeira
O discurso das autoridades monetárias predominantemente negativo no início, agora virou positivo, mostrado uma clara mudança na visão deles sobre o assunto.
Isso não é surpresa, toda inovação passa por um ciclo de disseminação ditado por um modelo sociológico em que o primeiro estágio é o da negação e resistência. Depois vem a aceitação, a integração e finalmente o uso da nova tecnologia pela sociedade.
A China saiu na frente e vai dar um salto gigantesco
A China pode ser considerada o primeiro país a criar uma moeda digital que não tem propriamente um nome, vem sendo chamada em chinês simplesmente de “moeda digital” e os próprios chineses usam o termo em inglês DC/EP ou DCEP – Digital Currency Eletronic Payment para se referir à nova moeda (2).
(2) Moeda digital em chinês: 数字货币; Nome oficial do atual papel moeda chinês: Renminbi ou 人民币; Nome popular do atual dinheiro chinês: Yuan ou 元
Quando for lançado oficialmente o “Yuan digital” será distribuído pelo Banco Popular da China (PBoC – People Bank of China), que no momento está fazendo um teste piloto junto com três outros bancos. O DCEP chinês foi lançado em caráter experimental em Suzhou e algumas outras cidades. McDonalds, Subway e mais 17 empresas também participam dos testes. Na figura abaixo um print de tela dos celulares mostrando carteiras digitais (wallets).
Veja os principais atributos tecnológicos usados na moeda digital chinesa:
- Layer two p2p transactions: você não precisa estar online para fazer transações, a transferência de dinheiro digital entre o dispositivo móvel de duas pessoas pode ser feita off-line via tecnologia NFC (Near Field Communication) com registro posterior na primeira conexão á Internet;
- Anti-counterfeiting identification: existe um sistema de verificação da autenticidade da moeda digital para detectar falsificações;
- Trusted Execution Environment (TEE): a carteira de dinheiro digital é protegida por uma tecnologia de certificação remota que torna confiáveis os acessos ao telefone celular (remote attestation based on mobile phone root trust)
- Know Your Client (KNY) e Anti-Money Laundry (AML): o banco central tem acesso aos dados das transações e baseado em big-data foca apenas em grandes movimentações para identificar as partes envolvidas e detectar operações de lavagem de dinheiro.
- Modelo de Unspent Transactions Output (UTXO): funciona como se fosse um sistema que registra o valor remanescente na carteira digital depois de concluída a transação. Se baseia em um modelo de tokens ao invés de um modelo de contas.
Não se preocupe se você não entendeu tudo, a coisa é meio complicada mesmo. No estágio atual de desenvolvimento as discussões acabam acontecendo com enfoque muito técnico. Com o tempo, a gente acaba se familiarizando com esses jargões.
Voltando à moeda digital chinesa, o turista que for visitar o país poderá criar uma carteira digital ao chegar, sem precisar ter conta em um banco local. Quando sair, poderá levar o Yuan digital para o exterior. Ficou claro para mim que a China quer internacionalizar sua moeda digital, muito provavelmente para rivalizar com o dólar americano.
Achei muito interessante a filosofia por trás da moeda digital chinesa. O objetivo do governo não é a simples digitalização do dinheiro. Até porque na China quase toda a população já faz pagamentos hoje por meios eletrônicos via dispositivos moveis.
Minha esposa e eu estivemos em Shangai no final de 2018 e ficamos envergonhados quando fomos pagar nosso café numa loja do Starbucks com um cartão de crédito. A mocinha do caixa não sabia como passar o cartão. Meu cartão tem chip e precisa ser inserido na maquininha porque não funciona por simples aproximação como os cartões mais “modernos”. Olhei para trás e a fila se formando. A galera toda esperando já com o celular na mão, devia estar pensando: “esse cara ainda está na idade da pedra ...”.
Na minha visão, ao criar a moeda digital a China está construindo uma nova arquitetura financeira apoiada em três pilares:
1. Inclusão financeira: no topo das prioridades está incorporar ao sistema financeiro o enorme contingente de chineses que não tem acesso à bancos, investimentos, empréstimos, câmbio etc. Estima-se que cerca de 40% a 50% da população mundial esteja excluída do sistema financeiro tradicional e a China contribui com grande parte desse contingente;
2. Tokenização da economia: a nova moeda digital pretende “tokenizar” toda a economia, capturado na mensuração do PIB tudo que hoje fica de fora da economia. Em outras palavras, a China quer fazer aparecer no radar os clientes e negócios que acontecem hoje, mas não são enxergados pelas autoridades monetárias e por isso não são mensurados. Essa verdadeira “economia da Internet” vai focar em escala, escopo e integração. Quando aquilo que acontece através da economia formal, mas não é enxergado, for unido com aquilo que rola na economia informal e não é medido, tudo numa coisa só, o PIB da China vai dar um salto enorme. Vai começar a surgir um gap na mensuração do PIB de países com moeda digital e países que ainda não tiverem implantado uma;
3. Infraestrutura tecnológica: para tornar a inclusão financeira uma realidade e incorporar na economia aquilo que atualmente não é capturado, não basta apenas criar uma moeda digital. A tecnologia vai desempenhar um papel central em um país continental, com extensas áreas rurais e tão dispare como a China. Aqui estamos falando da integração de IoT x chips x 5G x big-data x cloud x serviços digitais x painéis solares x blockchain x ________ (complete à vontade).
Pensei em um exemplo meio maluco para ilustrar isso. Imagine que um chinês vende a bicicleta para um amigo nos cafundós do país. Essa transação hoje não é registrada, portanto, não aparece no PIB. Vamos então colocar um sensor IoT (Internet das cosias) na bicicleta. Quando ela for vendida e paga com o Yuan digital, a transação vai ser transmitida por wifi com velocidade 5G, através de torres da prestadora de serviços digitais alimentadas por energia solar. A operação vai ficar registrada na nuvem mantida pelo banco central chinês de onde o governo “garimpa” o big-data e transforma os dados em informações sobre a economia. Pense bem, por ano, devem trocar de dono algumas centenas de milhões de bicicletas na China.
Provavelmente, isso só será possível porque na China vigora um sistema de governança centralizado onde a palavra privacidade tem significado diferente ...
Os principais riscos estão na implantação
Como toda moeda tem dois lados, mesmo as digitais, existem riscos que estão sendo considerados. Os principais problemas surgirão na interação do sistema financeiro tradicional com as novas moedas digitais.
- Bancos centrais: terão o papel muito ampliado e precisarão rever sua infraestrutura e a concentração de poder precisará ser adequadamente regulada
- Alocação de crédito: poderá ter efeito negativo reduzindo a eficiência econômica do sistema de controle atual
- Bancos comerciais:(i) Depósitos bancários se tornarão menos atrativos, ainda mais em ambientes com juros zero ou negativos e instituições que cobram taxas de administração e taxas por transação. (ii) A desintermediação levará a redução do setor bancário
- Política monetária (dados da China): (i) Caso o DCEP responda por 10% do M0 (3) isso representará uns 0,5% do M2 (3) o que seria menor do que o nível atual (1,4%) representado pelas empresas que operam na intermediação de pagamentos eletrônicos tipo administradoras de cartões, PayPal, ApplePay etc. (ii) A transferência de M2 (3) para o DCEP terá que ser controlada para evitar que recursos sejam sugados em massa dos bancos comerciais e trocados por moeda digital, além de evitar que grandes transferências afetem o equilíbrio dos bancos comerciais. Por exemplo, a conexão de carteias digitais (wallets) com grandes bancos será interrompida quando for detectada uma transferência de montantes extremamente altos.
- Meios eletrônicos de pagamento atuais:(i) Será negativo o efeito sobre as empresas de pagamentos eletrônicos cuja vantagem competitiva se igualará às transações com moeda digital; (ii) Além disso, essas empresas perderão poder e negócios gerados pelos dados que obtém dos clientes (hábitos e comportamento de compra etc.); (iii) A escala que essas empresas possuem hoje será reduzida drasticamente.
(3) Nota: M0: é o dinheiro que circula na economia, i.e., a quantidade de notas e moedas nas mãos dos cidadãos, além de dinheiro que os bancos têm em caixa e depositado no banco central; M1: inclui o M0 mais os depósitos atuais dos cidadãos, ou seja, o dinheiro que os cidadãos tem facilmente acessível na conta corrente para gastar; M2: inclui o M1 mais os depósitos de curto prazo que os cidadãos têm no sistema financeiro, ou seja, o dinheiro e os seus substitutos com prazos de liquidez de até um ano (CDB, CDI ...)
Ainda que bancos comerciais, empresas de pagamentos por meios eletrônicos e os demais players do sistema financeiro atual abracem rapidamente as moedas digitais, tenho a impressão que sairão perdendo. Por natureza, a moeda digital esta no rol de tecnologias disruptivas. Quando elas chegam, mudam o status quo e pouca coisa da estrutura antiga permanece de pé.
Giro por alguns países da Ásia
Veja o estagio em que alguns países asiáticos se encontram nas pesquisas e desenvolvimento de sua moeda digital:
- Hong Kong – Tailândia: O Projeto LionRock é uma iniciativa conjunta do Hong Kong Monetary Authority e do Bank of Thailand, baseado na plataforma de blockchain Corda R3. O desenvolvimento envolve uma moeda digital voltada apenas para o depósito de reservas no banco central por instituições financeiras, chamada de “Whosale CBDC” (moeda digital de atacado). Os países desenvolvidos não são muito fãs das moedas digitais votadas para o publico em geral conhecidas por “Retail CBDC” (moeda digital de varejo) por temerem competição entre o banco central e os bancos comerciais.
- Camboja: O Projeto Bakong está desenvolvendo um aplicativo, com formato que funciona quase como uma CBDC, baseado na plataforma de blockchain Hyperledger Iroha para servir de gateway de pagamento. O app será conectado diretamente a uma conta corrente bancaria, como fazem os sistemas terceirizados de pagamento eletrônico, protegendo as informações e dados sensíveis das transações online com criptografia e assegurando o trafego seguro, com os pagamentos dependendo de autorização da operadora financeira. O objetivo das autoridades é desdolarizar a economia
- Japão: O Projeto Stella é um projeto de pesquisa que vem sendo conduzido desde 2016 pelo Bank of Japan (BOJ) e pelo European Central Bank (ECB) analisando conceitualmente as oportunidades e desafios que trazem as tecnologias de registro distribuído (distruted ledger - DLT) e infraestrutura do mercado financeiro (financial Market infrastructure - FMI). A cada ano um relatório do projeto é publicado marcando uma fase. A fase 1 foi em 2017 e a fase 4 acontece em 2020. O Japão não pretende, por enquanto, criar uma moeda digital. Como explicou Kodai Sato, Pesquisador Sênior do Instituto Nomura de Pesquisas: por que precisaríamos de uma CBDC? Cerca de 99% dos japoneses tem uma conta bancária. Além disso, mesmo sendo um dos países mais tecnológicos do mundo, o japonês gosta de dinheiro em papel. No Japão 21% do dinheiro estão em circulação, comparados com 8,9% na China e EUA.
O G20 vai ter que ser ampliado para G200 para poder acomodar a regulamentação das transações internacionais com tantos modelos diferentes de moeda digital.
No final do mês vai ser publicado um relatório intitulado The State of Central Banks Digital Currency Proposals 2020, trazendo entrevistas feitas com os bancos centrais de países da Europa e Américas. Fique de olho.
Os CBDC chegarãomais rapidamente do que imaginamos e conviverão com as centenas de criptomoeds que já circulam por aí. Muito mais do que a simples digitalização do dinheiro, os CBDC, as criptomoedas e os criptoativos levarão a uma definição inteiramente nova de economia, transformarão o sistema financeiro como hoje oconhecemos hoje e criarão meios inimagináveis de poupar, investir e gastar.
Grande abraço,
Eder.
Nota: Esse artigo aqui é o 99º que publico no LinkedIn e antecipa a comemoração do 100º artigo por uma razão muito simples. Quero deixar registrado para mim e para vocês, que as revoluções tecnológicas chegam antes do que prevemos e mudam tudo. Sim, a paciência é uma virtude, mas certas coisas não podemos esperar ...
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