De Sāo Paulo, SP.
Mais de 100 países estudam o lançamento de sua versão da “moeda digital do banco central”, conhecida em inglês por CBDC, acrônimo para Central Bank Digital Currency. De acordo com o Atlantic Council Geo-economics Center, isso representa uns 95% do PIB mundial, portanto, a chegada do dinheiro digital é só uma questão de tempo, de pouco tempo.
China, França e Índia já lançaram um piloto, Reino Unido, Paquistão e Brasil divulgaram planos para suas CBDC, enquanto nas Bahamas já é realidade.
Diferentemente das cryptomoedas, as moedas digitais oficiais dos países não têm nada a ver com descentralização, tem a ver com “digitalização” da economia. Têm a ver com abandonar o dinheiro em papel, com tornar programável o dinheiro nacional, com incentivar ou desincentivar certas atividades econômicas.
Considerando que a maioria das pessoas possui conhecimento bastante limitado sobre Web 3, tokens, carteiras digitais, blockchain e toda a tecnologia de cryptografia por trás das CBDC, qual a chance de termos um debate amplo, democrático, transparente e justo sobre o Real Digital?
Mesmo o BACEN compartilhando com a mídia o roteiro de desenvolvimento do Real Digital, isso não quer dizer que ele não possa vir a ser redesenhado ou modificado mais adiante, sem o consentimento dos cidadãos brasileiros.
Tudo que queremos - e temos todo o direito de saber - é quais as intenções no longo prazo do Banco Central do Brasil com o Real Digital em relação aos cidadãos do país?
O mundo distópico de George Orwell com 40 anos de atraso?
Duas preocupações costumam emergir na literatura publicada pelos bancos centrais na comunicação do lançamento de suas CBDCs:
- Os técnicos têm dificuldade para explicar os motivos, sob a perspectiva da sociedade e dos negócios, pelos quais estão considerando a CBDC e não conseguem detalhar claramente seus benefícios para o cidadão comum;
- Os riscos das CBDC são largamente ignorados pelos bancos centrais, quando muito, ficam circunscritos aos aspectos financeiros e de política monetária.
O Real Digital trás uma gigantesca ameaça à proteção dos direitos humanos dos consumidores. Se for desenhado de forma inapropriada, terá potencial para ser usado como meio de vigilância e controle do cidadão comum pelo governo.
O Real em papel moeda, uma vez impresso e colocado em circulação pelo BACEN, é virtualmente impossível de ser rastreado. Aquela nota de R$10 que você carrega no seu bolso, pode ter sido usada anteriormente em centenas de pagamentos, mas não existe registro dessas transações, nem de quem foi dono anterior da nota.
A privacidade é preservada, não existem terceiros controlando como você nem como os donos subsequentes da nota, gastam esse dinheiro.
Com o Real Digital, cada transação ficará registrada e qualquer autoridade com acesso a esses registros digitais poderá ver todas as transações. Isso pode ser útil paras monitorar a economia e suas tendencias, mas está sujeita a abusos pelo governo e pelos terceiros com acesso aos dados.
Por exemplo, pode ser facial identificar membros de partidos políticos, grupos religiosos, comunidades sociais, setores militares. Em essência, o Real Digital pode ser usado para construir um perfil completo de cada individuo que esteja usando o dinheiro digital.
O Real Digital, potencialmente, pode virar um sistema de vigilância da população, controlando onde os indivíduos gastam seu dinheiro, quanto gastam, em que gastam, quando gastam. Todo tipo de controle é possível.
Pode-se colocar prazo de validade para o Real Digital, pode-se limitar quanto uma pessoa pode gastar ou possuir, pode-se atribuir diferentes taxas de juros e preços, dependendo de quem tem o dinheiro, pode-se impedir compras de determinados produtos, deduzir multas e impostos automaticamente da carteira digital de uma pessoa etc.
Particularmente preocupante é a tendencia de se conectar a CBDC com a identidade digital. A identidade digital é vista por alguns como componente chave para disseminação do dinheiro digital.
Essa narrativa vem sendo defendida por burocratas e técnicos que estudam um substituto para a identidade em papel, bem como por reguladores a procura de novas soluções para combater crimes financeiros.
No entanto, a identidade em papel é desnecessária para fazer pagamentos. Nāo existe nenhuma razão para um supermercado, um restaurante ou um taxi precisarem saber quem você é ou qualquer coisa sobre você, o mesmo vale para pagamentos com dinheiro digital.
Quando se fala de pagamento digital, é comum os burocratas confundirem erroneamente a identificação digital dos destinatários da transferência do dinheiro com a identidade digital deles.
Identificação digital é necessária para endereçar o pagamento para a pessoa certa e para que a pessoa que faz a transferência tenha certeza de que tem o endereço digital correto.
As soluções para isso são diferentes das soluções de identidade e não existe absolutamente nenhuma razão para conectar todos os pagamentos digitais à sua identidade digital. Fazer isso seria catastrófico para a privacidade, para as liberdades individuais e para a democracia.
A identidade é necessária para achar criminosos se eles cometerem fraude, lavagem de dinheiro ou financiarem atividades criminosas. Identidade também é necessária para fornecer as credenciais de acesso seus ativos digitais.
No entanto, num mundo em que o dinheiro passa a ser programável, a identidade digital vai muito além de apenas permitir acesso aos seus ativos.
O uso desses ativos pode ser condicionado a sua identidade digital se for parte do sistema de pagamentos, ou seja, uma loja pode unir sua identidade ao pagamento para saber que é você que está fazendo o pagamento.
Mas quando esses ativos estão em Real Digital, então o banco central e por conseguinte o governo, podem controlar diretamente como você gasta e recebe seu dinheiro.
Desconfie de qualquer um que esteja defendendo a conexão de sua identidade digital ao Real Digital e questione as razões dessa defesa. Da mesma forma, desconfie de programas de CBDC separados de sistemas de identidade digital, com origens independentes e sem nenhuma conexão que, de repente, se tornarem conectados.
Não existe motivo logico para fazer isso sob o ponto de vista monetário, mas um mar de razões e propósitos mal-intencionados com proposito de controle e vigilância.
O Real Digital começou mal
Conforme alertado acima, a maioria das pessoas possui conhecimento limitado sobre as tecnologias por trás da construção do Real Digital.
Quando o governo divulga na mídia que o Real Digital será executado num blockchain privado chamado Hylerledger Besu, que é compatível com o Ethereum Virtual Machine (EVM), isso é o mesmo que falar grego ou chinês para as pessoas.
Mas tem gente que conhece muito bem isso e vem alertando há alguns anos para os potenciais perigos.
O projeto do Real Digital está sendo desenvolvimento há pelo menos três anos, mas o código fonte (sempre ele) só foi disponibilizado pelo BACEN agora no dia 06 de julho, poucos meses antes do início dos testes piloto.
O código fonte do Real Digital pode ser acessado no GitHub – uma plataforma que hospeda códigos Open Source para programadores, utilitários ou qualquer um cadastrado que queira contribuir.
Um desenvolvedor de blockchain que analisou o código do Real Digital descobriu funções que permitem ao governo, em determinadas circunstâncias, congelar fundos, reduzir saldos de usuários do sistema, congelar e descongelar contas, aumentar ou reduzir saldos, movimentar moedas entre endereços (carteiras eletrônicas), criar reais digitais em um endereço específico.
O governo, não explica quais seriam as circunstâncias em que tudo isso poderia ser feito, nem quem teria o poder de fazê-lo. Nada está registrado nos smart contracts (contratos inteligentes) que regulam o funcionamento da moeda digital.
Imagine que você, cliente de um banco, queira sacar todo seu dinheiro de uma só vez da sua conta bancária. Você simplesmente poderia ser impedido pelo governo, através do mecanismo de funcionamento do real digital, de ter acesso ao seu próprio dinheiro e ficar limitado ao cumprimento de regras imposta pelo BACEN.
O Real Digital é importante demais para ser deixado a cargo apenas de técnicos e burocratas do Banco Central do Brasil e demais órgãos do governo. O assunto requer o envolvimento da sociedade num debate amplo, transparente e prévio ao seu lançamento, antes que seus perigos sejam irreversíveis ...
Grande abraço,
Eder.
Fontes: The Risks to Society of Central Bank Digital Currencies (CBDC) , escrito por Jeremy Light | Real Digital contém código que pode congelar ou subtrair fundos, escrito por Ana Luiza | Real digital poderá ter “circuit breaker” e congelamento de saques, escrito por Gustavo Bertolucci
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