domingo, 12 de novembro de 2023

NĀO FOMOS FEITOS PARA ENVELHECER: O DESAFIO MORAL DE USAR IA PARA AJUDAR NAS DECISŌES DE VIDA E MORTE

 


De Sāo Paulo, SP.


Você já parou para se perguntar por que nosso corpo se deteriora tanto quando envelhecemos? Em que ponto nosso processo evolutivo falhou tão fragorosamente? 

A resposta é que nós evoluímos bem, mas muito rápido. 

Nosso corpo, assim como o de qualquer outro animal, foi feito para atingir o pico o mais rápido possível, reproduzir, viver o suficiente para ver nossa prole atingir a independência e morrer. 

Era assim que nossos ancestrais viviam há centenas de milhares de anos. Mas, então, a espécie humana fez algo que nenhuma outra espécie havia feito, deu um salto evolutivo gigantesco. 

Deixamos as cavernas, pousamos na lua, mapeamos nosso genoma e reviramos as bases de construção da realidade. No meio disso tudo, as áreas de saúde e medicina cresceram como nenhuma outra.

Mal nos damos conta de que a maioria das pessoas se livra de uma infecção bacteriana hoje, que quase certamente teria sido fatal para nossos encentrais, com um simples comprimido.

O advento da civilização certamente elevou nosso padrão de vida para um nível completamente diferenciado e com ele, inevitavelmente, veio a extensão da vida.

Poucos, provavelmente nenhum, de nossos antepassados distantes conseguia viver até a idade de 80, 90, 100 anos. A vida selvagem simplesmente não permitia atingirmos essas idades. O mundo era um lugar muito perigoso e bruto.

Ninguém com dor nas costas teria boa chance de sobrevier a um encontro com um tigre dente-de-sabre. Hoje em dia, o risco seria do tigre. 

O envelhecimento nunca foi concebido para ser uma característica do ser humano, muito menos para ser bonito. Nosso corpo é desprovido de meios para conservar perfeitamente a constante renovação celular. Lenta e inexoravelmente nosso organismo se desvia da programação impressa na composição genética.


Imagem gerada por Keg Umian usando inteligencia artificial


Os telômeros se partem, os erros durante a mitose vão se acumulando, da mesma forma que se acumulam as toxinas dentro das células. Na medida em que o tempo passa, o estresse oxidativo vai causando mais e mais defeitos em nosso interior e nossos ossos vão se tornando mais fracos a cada dia.

O objetivo da evolução nunca foi aperfeiçoar o envelhecimento. O envelhecimento é, na verdade, a antítese da evolução, um lembrete de que a natureza não favorece o passar do tempo para ninguém. 

Nós é que nos agarramos tenazmente ao envelhecimento como sendo a única oportunidade para continuar caminhando na face da Terra.

Portanto, toda vez que você sentir dor nas costas por não ter mais de 18 anos, lembre-se que você já está vivendo na prorrogação. A vida depois dos vinte e poucos anos costumava ser tão sem sentido quanto o talento para ajudar fisicamente a caçar mamutes. 

Fomos concebidos para viver, atingir o ápice e morrer rapidamente. Era assim no mundo pré-histórico, continua assim sendo no mundo atual e não há previsão de que isso vá mudar no horizonte de tempo futuro que conseguimos enxergar

Por isso, em Roterdã - Holanda, Philip Nitschke conduz os testes finais do “Sarco”, antes de enviar a máquina para a Suíça, onde o primeiro usuário a espera. 

Sarco, protótipo de um dispositivo para “suicídio assistido”, é uma capsula do tamanho de um sarcófago - no melhor estilo Star Treck - produzida com uma impressora 3D pela “Exit International”, uma organização sem fins lucrativos.


Sarco, produzido pela Exit International


Nitschke quer “desmedicalizar a morte” através da tecnologia. 

Selada dentro da máquina, a pessoa que decidiu morrer precisa responder três perguntas: Quem é você? Onde você está? Você sabe o que vai acontecer quando você apertar aquele botão? 

Eis o que vai acontecer: a cápsula será preenchida com nitrogênio gasoso, o ocupante desmaiará em menos de um minuto e morrerá por asfixia, sem sentir nada, em menos de cinco. 

Uma gravação dessa curta entrevista final será, então, entregue para as autoridades Suíças. Nitschke não pediu autorização do governo, mas a Suíça faz parte de um punhado de países onde o suicídio assistido é legalizado. É permitido, desde que a pessoa que deseja morrer realize o ato final por conta própria.

Nitschke quer tornar o suicídio assistido o mais desassistido possível, dando autonomia, portanto dignidade nos momentos finais, à pessoa que decidiu se matar. “Você não precisa de um médico para morrer”, diz ele.

Por usar nitrogênio, um gás amplamente disponível, ao invés dos barbitúricos tipicamente usados em eutanásias clínicas, o Sarco não requer um médico para injetar uma injeção ou emitir uma receita da droga letal.  

Pelo menos essa é a ideia. Porém, Nitschke não vai conseguir se livrar totalmente do “establishment” médico. A Suíça exige que os candidatos a eutanásia demonstrem capacidade mental, o que geralmente é atestado por um psiquiatra. 

“Ainda há a crença de que se uma pessoa está querendo morrer, ela tem algum tipo de doença mental não diagnosticada, que não é racional alguém querer morrer”, diz Nitschke.

Por isso ele está trabalhando num algoritmo que permitirá que a pessoa faça uma espécie de autoavaliação psiquiátrica em um computador. Em teoria, se a pessoa passar nesse teste online o programa fornecerá um código de quatro dígitos para ativar o Sarco. 

Mas a coisa não é tão simples assim. A inteligência artificial (IA) vem sendo usada para fazer triagem e tratar pacientes em diversos campos da medicina. Na medida em que os algoritmos se tornam uma parte importante da saúde, temos que assegurar que seu papel seja limitado às decisões médicas, não às morais.

A pressa para automatizar levanta questões difíceis de responder. Em que tipo de decisão seria apropriado usar um algoritmo? Como esses algoritmos deveriam ser programados? Quem tem a palavra final sobre como eles devem funcionar?

Em 2021 existiam nos EUA 43 estudos sendo conduzidos por pesquisadores com base em modelos de machine-learning, tentando prever se um paciente seria readmitido ou morreria depois de sair do hospital. Nenhum deles era preciso o bastante para uso clínico. 

Mesmo quando a IA parece ser precisa, acadêmicos e reguladores clamam por cuidado. Os dados usados pelos algoritmos e a maneira que eles usam esses dados, são produzidos por humanos, repletos de tendenciosidades. Dados de saúde, por exemplo, são predominantemente de pessoas brancas do sexo masculino, o que distorce seu poder preditivo.

Os modelos oferecem apenas um verniz de objetividade, podendo levar as pessoas a transferirem a responsabilidade pelas decisões éticas, cofiando na máquina ao invés de questionarem seus resultados.  

No ano 2000 foi desenvolvido nos EUA um algoritmo para identificar destinatários da doação de rins. Algumas pessoas ficaram insatisfeitas com a forma que o algoritmo foi desenhado. Em 2007, Clive Grawe, candidato a receber um transplante de rim em Los Angeles, disse para um auditório repleto de especialistas médicos que o algoritmo deles era tendencioso e desfavorecia pessoas mais velhas como ele.



Photograph: MatejMo/Getty Images/iStockphoto


O algoritmo havia sido desenhado para destinar os rins doados de maneira a maximizar o número de anos de vida da pessoa salva. Isso favorecia pessoas jovens, saudáveis e brancas, argumentaram Grawe e outros pacientes.

Distorções como essa são comuns em algoritmos. Menos comum é os criadores desses algoritmos reconhecerem que existe problema. Após anos analisando reclamações como as de Grawe, os programadores encontraram uma forma menos tendenciosa de maximizar os anos de vida salva – consideraram, entre outras coisas além da idade, o estado geral de saúde do destinatário dos rins. 

Uma mudança chave no algoritmo foi que a idade dos doadores, a maioria jovens que morreram cedo, não acarretaria a seleção de destinatários na mesma faixa etária. Alguns rins poderiam, agora, ser destinados a pessoas mais velhas, se elas fossem saudáveis. 

O algoritmo poderia, ainda assim, tomar decisões que não agradam a todos, com as quais nem todo mundo concorda, mas o desenho ficou mais difícil de criticar. 

Voltando a Nitschke, que também vem fazendo perguntas difíceis.

Um ex-médico que tacou fogo em seu diploma após uma disputa legal que durou anos, contra o Conselho de Medicina da Australia, Nitschke foi a primeira pessoa a ministrar legalmente uma injeção letal voluntária em outro ser humano. 

Nos nove meses, entre julho/1996 e março/1997, durante os quais uma lei legalizou a eutanásia no Território do Norte da Australia – revogada pelo governo federal – Nitschke ajudou quatro de seus pacientes a se matarem. 

O primeiro, Bob Dent, um carpinteiro de 66 anos sofrendo de câncer de próstata por cinco anos, explicou sua decisão numa carta: “Se eu tivesse mantido um animal de estimação na mesma condição que eu estou, eu teria sido processado”.

Nitschke queria ajudar seus pacientes a tomarem a decisão, mas se sentia desconfortável tendo que aplicar a injeção letal, então fez uma máquina para tomar seu lugar: “Eu não queria sentar lá e dar a injeção”, disse ele. “Se você quiser, você aperta o botão”.

Agora Nitschke enxerga como próximo passo um algoritmo que faça a avaliação psiquiátrica, mas há grande chance dessa esperança ser frustrada. Criar um programa que possa avaliar a saúde mental de uma pessoa é um problema sem solução – e um bem controverso. 

Como o próprio Nirschke fala, os médicos não concordam sobre o que significa uma pessoa mentalmente sadia escolher morrer. “Você vai obter uma dúzia de respostas diferentes de uma dúzia de psiquiatras”, diz ele. Ou seja, não existe uma base de concordância sobre a qual até mesmo um algoritmo possa ser construído.

Mas essa não é a conclusão aqui. Nitschke está perguntando o que conta como decisão médica, o que conta como decisão ética e quem escolhe. Quando os pacientes têm mais ou menos a mesma chance de sobrevier com um transplante de rim, quem vive e quem morre passa a não ser mais uma questão técnica.

A sociedade deveria ser responsável por tais decisões, ainda assim, o processo pode ser codificado num algoritmo, se for feito de forma inclusiva e transparente. 

Para Nitschke, o suicídio assistido também é uma decisão ética, uma que os indivíduos devem fazer por si mesmos. O Sarco e o algoritmo que ele imagina, apenas protegeriam a capacidade das pessoas poderem tomar a decisão. 

A IA se tornará cada vez mais útil, talvez essencial, na medida em que a longevidade estica e a população envelhece. No entanto, o verdadeiro desafio será lidarmos com o horror e a arbitrariedade de muitas decisões que a IA será chamada a tomar e isso, é por nossa conta. 

Os fundos de pensão e os planos de assistência médica foram concebidos para ajudar a equacionar os aspectos financeiro e de saúde das pessoas. Mas na medida em que as pessoas envelhecem, nem a medicina, nem o dinheiro, são capazes de solucionar o que acontece depois.

Será que está na hora de começarmos a discutir o aspecto ético e moral da decisão individual de viver ou morrer no fim da vida?  


Grande abraço,

Eder,


Fonte: “We Were Never Meant to Age”, escrito por Keg Umian | “The messy morality of letting AI make life-and-death decisions”, escrito por Will Douglas Heaven.


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