De Sāo Paulo, SP.
Quando se trata de previdência complementar, saber quanto poupar para ter segurança financeira no futuro é um desafio monumental.
As pessoas, atualmente, têm em média entre 8 e 10 empregos ao longo da vida profissional e vivem por muito mais tempo.
Com idade de aposentadoria de 65 anos no INSS e uma expectativa de vida em torno de 80, o desafio do panejamento pessoal para a aposentadoria é enorme.
Do jeito que acabamos de aprovar a adesão automática nos planos de previdência complementar corporativos, daqui a 20 anos vamos olhar para trás e pensar:
... foi lá atrás que precipitamos os problemas com o sistema de aposentadoria e detonamos a crise dos fundos de pensão
Por ser um assunto chato e complicado para a maioria as pessoas e por caminhar lentamente, um monte de gente não notou que da forma como foi aprovada a adesão automática nos planos CD, os estilhaços vão ricochetear em todos nós daqui a algumas décadas.
O preço econômico da liberdade
As pessoas que se aposentavam com um plano de benefício definido (BD) no passado, tinham direito a uma renda pré-determinada na aposentadoria.
No final da década 80, surgiram no Brasil os planos de contribuição definida (CD). Diferentes dos BD, nos planos CD a pessoa transforma um bolo de dinheiro (saldo de conta acumulado) num produto financeiro, que vai entregar uma renda até o saldo terminar.
Quando atinge a idade de aposentadoria nos planos de previdência complementar, geralmente entre 55 e 60 anos, a pessoa é livre para decidir, da maneira que quiser, como vai receber o benefício do plano CD.
Ela pode retirar gradualmente o dinheiro da poupança de aposentadoria e ir gastando aos poucos para viver, dosando as retiradas para não zerar o saldo.
Ou pode tirar uma parte à vista, na hora que se aposenta (geralmente limitada a 30% do saldo acumulado) – para renovar a cozinha, comprar um carro novo ou bem, para qualquer coisa – e ir retirando o resto do $$$ numa velocidade maior, para pagar as contas mês a mês.
Não há a opção de transformar todo o saldo de conta do plano CD, (no momento da aposentadoria, nem depois) numa renda vitalícia, poque as seguradoras não tiveram interesse no Brasil, em criar um mercado de anuidades.
É difícil argumentar contra a liberdade. Quem, não gosta da ideia de deixar as pessoas livres para tomarem suas decisões de como gastar seu próprio dinheiro?
Porém, as escolhas individuais, feitas livremente, tem consequências sobre os outros, mesmo quando se trata de gastar seu próprio dinheiro.
“As decisões dos participantes da previdência privada, não são um assunto inteiramente privado”
Temos uma gama de políticas públicas que encorajam a poupança em planos de previdência complementar, porque é bom para as pessoas terem dinheiro suficiente para viver com certa segurança financeira, depois da aposentadoria.
Em parte, isso é bom para as pessoas, mas também em parte, é bom para a sociedade porque se elas não tiverem dinheiro suficiente, os pagadores de impostos terão que sustentá-las e os contribuintes já recolhem bilhões de reais em impostos para financiar a previdência social.
A previdência complementar, portanto, não é um assunto inteiramente privado. Assegurar que todos tenham uma poupança de previdência complementar decente – e depois a usem com sensibilidade na aposentadoria – não é simplesmente uma questão de “liberdade”, porque as decisões que tomamos a respeito da nossa previdência complementar individual, tem consequências para os outros.
É exatamente por isso, que nos estágios iniciais do processo de participação em um fundo de pensão - enquanto estamos trabalhando ativamente e contribuindo para um plano de previdência complementar - não somos realmente “livres” para fazer o que quisermos. Sim, enquanto está trabalhando, você só pode acessar seu próprio dinheiro se terminar o vínculo de emprego com a empresa patrocinadora.
Se você pudesse resgatar todo o dinheiro do seu fundo de pensão a qualquer tempo, haveria consequências adversas para você e para toda a sociedade.
Então, temos políticas e regulamentações que “encorajam” fortemente as pessoas a poupar e não mexer no $$$ durante a vida ativa para, assim, formarem ao menos alguma poupança previdenciária.
Esse é o objetivo da adesão automática, que inclui o empregado recém-contratado no plano de previdência complementar da empresa, automaticamente. Tornamos indesejável e difícil o exercício da liberdade de escolha durante a vida ativa, para que as pessoas que participam de um plano CD poupem e ainda oferecemos incentivos fiscais para fazerem contribuições.
O papel do governo nas duas fases da aposentadoria
De modo geral, durante a fase de acumulação, nossas políticas públicas de previdência complementar são ligeiramente paternalistas e dão um empurrãozinho para que as pessoas caminhem na direção que o governo quer que as pessoas caminhem.
Ao atingir a idade de 55 a 60 anos, o paternalismo desaparece e a liberdade significa que você está mais ou menos entregue a sua própria sorte, cabendo a você achar o caminho, em geral sem te darem um mapa.
Essencialmente, durante várias décadas da sua vida profissional o Estado considera que você deve ser fortemente pressionado para fazer coisas sensatas e prudentes com o seu dinheiro, caso contrário, você pode fazer coisas insensatas que poderão prejudicar você e os outros.
Aí, quando você completa 55, 60 anos, o Estado dá um passo atrás, se retira de campo e diz: “Faça o que quiser, gaste tudo num carro esportivo ou na reforma da sua cozinha, gaste devagar ou gaste rápido, não nos importamos”.
Isso é inconsistente não apenas em termos filosóficos. Isso tem recebido pouca atenção dos políticos ao longo das décadas porque os efeitos de decisões como a implantação da adesão automática em planos CD, demoram para surgir.
A natureza lenta da formação da poupança previdenciárias e depois de seu gasto ao longo da aposentadoria (“acumulaçāo” e "desacumulaçāo”, para usar os termos do setor), significa que os efeitos da crise que vai se formar com a adesão automática nos planos CD levarão algum tempo para serem sentidos.
Para onde vai o dinheiro dos resgates?
Pesquisas internacionais mostram como as pessoas usam o dinheiro dos planos de previdência complementar, quando podem resgatar uma parte ou todo o saldo de conta na data da aposentadoria. Aqui na "Terra de Cabral" não temos estatísticas, mas esse comportamento humano não deve diferir muito entre países.
A pesquisa acima mostra que um alarmante número de pessoas que tem acesso imediato às suas poupanças previdenciárias, não está gastando o dinheiro (resgate) para investir e obter uma renda nas fases mais avançadas da vida.
Advinha o quê? As pessoas não estão usando a liberdade que os planos de previdência complementar lhes fornece, nem para fins previdenciários, nem para buscar segurança financeira futura.
Uma minoria de 35% das pessoas que resgataram 100% do saldo de um plano CD no Reino Unido, colocou ou pretendia colocar o $$$ em uma poupança ou investimento.
Em contraste, 47% disseram que usariam o dinheiro para “grandes despesas” e outros 21% pretendiam usá-lo imediatamente para pagar dívidas.
O que são “grandes despesas”? Bem, 25% disseram que usariam o $$$ de sua previdência para reformar a casa, 18% para viajar e 16% para as despesas diárias.
Apenas para ficar claro, não tem nada errado, per se, em poupar em um plano de previdência complementar e depois dos 50 usar o dinheiro para ter uma cozinha nova ou viajar – desde que você tenha dinheiro suficiente para fazer essas coisas e atender também o propósito original dessa poupança, que é obter segurança financeira na aposentadoria.
Agora, tem uma pegadinha nisso. Muitas pessoas gastando o dinheiro do resgate numa cozinha ou num cruzeiro pelas Bahamas, ficarão OK na velhice – porque esse não é o único dinheiro que elas têm. Na geração que vai saindo de cena, muitas pessoas com 50, 60 anos contam com uma renda BD, além do plano CD. Então, gastar o $$$ do resgate do modesto plano CD, pode ser uma decisão perfeitamente razoável quando se tem outra renda BD que vai durar a vida toda.
Acontece que essa mistura de BD + CD acabou, mas ainda vai demorar umas duas décadas para isso produzir efeitos. Ou seja, vai demorar para vermos o resultado do cenário atual, em que pessoas com 60 anos, que entraram num plano de previdência complementar via adesão automática, contarão apenas com a renda de um plano CD.
Já é possível antecipar o que vai acontecer no futuro, mas até lá, aqueles responsáveis hoje pelas políticas publicas de previdência complementar, que aprovaram a adesão automática do jeito que foi concebida, terão saído do cenário político há muito tempo e estarão, possivelmente, desfrutando de seus generosos benefícios de renda vitalícia de planos BD.
O que o governo deveria fazer
As ações do governo no delineamento de políticas publicas deveriam se estender para a fase da desacumulaçāo, aquela em que a pessoa começa a gastar a poupança que acumulou durante a vida em um plano de previdência complementar.
As medidas possíveis variam desde incentivos e educação financeira - medidas necessárias, mas insuficientes - passando pelo estabelecimento de regras claras para o desenho e funcionamento dos planos de previdência complementar.
E claro, uma regulamentação urgente das seguradoras que leve a criação de um mercado de anuidades no Brasil, permitindo a compra de rendas vitalícias por quem assim o desejar. Deixado a própria sorte, com seguradoras que usam a mesma tábua atuarial, construída por elas mesmas (BR-EMS), o mercado de anuidades não vai rolar.
A regulamentação poderia exigir, por exemplo, que uma pequena parte (20%, 25%) de qualquer resgate de reserva de plano CD, na data da aposentadoria, fosse direcionada para compra de uma renda vitalícia.
Poderia exigir, também, que os operadores de planos de previdência complementar oferecessem aos participantes ferramentas, apoio e orientação efetivos na fase de desacumulaçāo.
Finalmente, deveria assegurar que a pessoa que entrou num plano de previdência complementar via adesão automática, esteja poupando o suficiente ao longo da carreira. O mesmo viés de comportamento usado para justificar a necessidade da adesão automática (a procrastinação e a inércia) passam a atuar em desfavor da formação de uma poupança adequada depois que a pessoa entrou no plano.
Um problema do congresso
Ao longo das últimas décadas houve praticamente zero debate na sociedade sobre a previdência complementar e quase nenhuma alteração no desenho dos planos.
Os problemas da desacumulação, da falta de um mercado de anuidades e da inadequação da renda gerada pelos planos CD, continuam praticamente inalterados e sem discussão.
Ainda assim, em 2024, é fácil imaginar um mundo em que as pessoas dependem apenas de planos CD - o mundo, certamente, dos nossos filhos.
Depois de acumular certa soma em dinheiro durante a vida profissional, as pessoas terão que descobrir como usar essa poupança para se manter pelo resto da vida.
Isso implica adivinhar quanto tempo viverão, qual será a inflação, quanto gastarão com assistência médica... em outras palavras, prever coisas que são muito difíceis ou impossíveis de prever, sem contar com boa informação nem ajuda sobre suas escolhas.
Acho que tudo que foi descrito nesse artigo pode ser interpretado como uma dica bastante clara para os políticos prestarem mais atenção a previdência complementar. Mas será que os políticos darão ouvido?
Nesse momento, o assunto nem aparece na agenda política. É técnico demais, complicado demais, distante demais do foco dos políticos, ainda mais em um ano de eleição, coisa de atuário, se diz por aí.
Não obstante, na medida em que mais e mais de nós atingir a idade de aposentadoria e depender apenas de um plano CD para viver, nossos “líderes”, eventualmente, terão que começar a prestar atenção para aqueles de nós que não conta com os benefícios dos regimes de aposentadoria, desfrutados pelos responsáveis pelo delineamento de políticas publicas de previdência complementar.
Grande abraço,
Eder.
Fonte: “A pension crisis is brewing”, escrito por Jams Kirkup.
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