De Sāo Paulo, SP.
O segundo furo no dique da perceção de que vivemos num mundo ordenado, que pode ser previsto, veio das descobertas da mecânica quântica do iníco do século XX. A física quântica mostrou que a natureza indisciplinada do universo não poderia ser totalmente explicada nem pelos deuses, nem pela física newtoniana.
Um mundo que pode ser definido, pelo menos em parte, por equações que produzem uma aleatoriedade inexplicável, não é apenas um mundo parcialmente aleatório, ele é surpreendentemente arbitrário.
Isso mudou a concepção científica dominante sobre nosso mundo, do determinismo para o indeterminismo.
Buscando sentido matemático para transformações sociais
Como querer que transformações sociais façam sentido, se as mudanças costumam surgir do caos? Esse é o grande problema das ciências sociais, um campo que tenta identificar padrões e exercer controle sobre o sistema mais indisciplinado e caótico que existe no universo:
Oito bilhões de cérebros humanos interagindo em um mundo em constante mudança
Apesar de no século XIX filósofos como o inglês John Stuart Mill e outros acreditarem haver leis que explicariam o comportamento humano, a ciência social foi sendo dissuadida da ideia de que existiria uma “física social”.
Os estudiosos das ciências sociais passaram a adotar o que o sociólogo americano Robert K. Merton chamou de “Teoria Intermediária”, na qual os pesquisadores procuram identificar padrões de regularidade em domínios menores, que mais adiante poderiam ser aglutinados para derivar os fundamentos teóricos mais amplos da sociedade humana.
A abordagem mais comum às ciências sociais é utilizar dados empíricos do passado para descobrir padrões ordenados, que apontem para relações estáveis entre causas e efeitos.
Quais variáveis se correlacionam melhor com o surgimento de guerras civis? Que indicadores econômicos oferecem, de modo mais preciso, sinais de alerta precoce das recessões? O que leva à democracia? Se oferecermos educação financeira, as pessoas irão aderir a um plano de previdência complementar e poupar regularmente para a aposentadoria?
A ciência social passou a ser dominada por uma ferramenta acima das demais: regressões lineares.
Por volta de meados do século XX, os estudiosos já não tentavam mais explicar o comportamento social através de leis (como a lei da gravidade, na física), mas ainda procuravam formas de identificar padrões claros dentro dos sistemas sociais.
O que limitava essa busca era a tecnologia. Isso mudou nas décadas de 80 e 90 com o poder dos computadores baratos e sofisticados. De repente, surgiu uma revolução quantitativa. Sociólogos, psicólogos, cientistas políticos, economistas, atuários, demógrafos, passaram a poder processar enormes quantidades de dados e rodar equações complexas. Softwares estatísticos de regressão linear começaram a ser usados para ajudar a explicar a relação entre variáveis e identificar a curva que mais se ajustava à dinâmica humana em estudo.
Nos anos 2000, pesquisadores que andavam pelo mundo inseridos em determinadas culturas para estudá-las, foram suplantados por analistas de dados que apenas manipulando números, sentados em escritórios, podiam oferecer evidências de fenômenos sociais ocultos, obscurecidas antes do aparecimento das análises numéricas sofisticadas.
Uma regressão produz uma equação simplificada que procura ajustar a uma curva um conjunto de dados do mundo real, enquanto “isola” potenciais ruídos, na esperança de identificar quais variáveis estão provocando a mudança.
Com os dados certos e uma regressão linear os pesquisadores podem, de forma plausível, identificar padrões com base em equações defensáveis. É assim que grande parte do conhecimento sobre sistemas sociais é produzido atualmente. Só tem um problema, um problema gritante:
Nosso mundo social nāo é linear. Ele é caótico.
As regressões lineares se baseiam em diversas premissas sobre a sociedade humana que são obviamente incorretas. Em uma equação linear o tamanho de uma causa é proporcional ao seu efeito. Não é assim que as dinâmicas sociais funcionam.
O assassinato de um único homem, o arquiduque Franz Ferdinand, desencadeou a primeira guerra mundial e causou 40 milhões de baixas. Apenas um vendedor de legumes, que ateou fogo no próprio corpo na Tunísia no final de 2010, provocou uma serie de eventos que levaram a guerra civil da Síria, com centenas de milhares de mortes, levando a queda de diversos regimes totalitários pelo mundo todo.
Recentemente, uma bala por pouco não matou Donald Trump na Pensilvânia: se uma simples rajada de vento ou um ligeiro movimento de corpo tivessem alterado sua trajetória, todo o século XXI teria seguido um caminho diferente.
São exemplos da teoria do caos nos sistemas sociais, onde pequenas mudanças nas condições iniciais podem transformar incontáveis destinos humanos.
Outro problema gritante é que a maioria das regressões lineares assumem que uma relação causa-e-efeito é estável ao longo do tempo. Convenci racionalmente um individuo a poupar, então, ele fará isso de forma consistente e ininterrupta, até se aposentar, na idade prevista no plano. Mas nosso mundo social está em constante mudança.
Um feirante tacando fogo em si mesmo raramente produzirá uma convulsão regional e inúmeros arquiduques morreram, só um jamais desencadeou uma guerra mundial. O timing também importa.
Ainda que a mesma mutação, no mesmo coronavírus, tivesse surgido exatamente no mesmo lugar, os efeitos econômicos e as implicações sociais da pandemia que se seguiu teriam sido drasticamente diferentes se tudo tivesse acontecido em 1990, ao invés de 2020.
Como milhões de pessoas teriam trabalhado em casa sem Internet? Pandemias, assim como muitos fenômenos sociais complexos, não são regidas uniformemente por padrões estáveis e ordenados.
Esse é um princípio da realidade social que os economistas conhecem bem, a “não-estacionariedade”: a dinâmica causal pode mudar até mesmo enquanto o fenômeno está sendo mensurado. Frequentemente, os modelos sociais lidam com esse problema simplesmente ignorando-o.
Tem mais, a maioria dos modelos de regressão linear são ineficientes para modelar duas facetas fundamentais do nosso mundo: sequenciamento, que é a ordem crítica em que os eventos acontecem; e espaço, a geografia física específica onde esses eventos ocorrem.
As explicações gerais oferecidas pela regressão linear ignoram a ordem em que as coisas acontecem. Embora essa abordagem possa por vezes funcionar, em outros momentos a ordem dos acontecimentos é crucial. Experimente adicionar farinha, depois do bolo pronto e veja o que acontece.
Da mesma forma, as regressões lineares não são capazes de incorporar facilmente características complexas do mundo físico ou capturar a maneira que as pessoas se comportam espacialmente.
Modelos de comportamento social tendem a conceituar as mudanças, num nível macro, por meio de números. Tipo: resultados econômicos ou rankings de democracia ou no de adesões ao plano de previdência complementar apos cursos de educaçāo financeira, em vez de observar como indivíduos diversos se adaptam e interagem em locais específicos.
A vida é bem diferente para pessoas que vivem na Antártica, comparada a pessoas que vivem nos Andes, no deserto da Australia, no centro de São Paulo ou em Brasiléia, no Acre.
O diabo mora nos detalhes
Ao simplificar uma complexidade quase infinita, as regressões lineares fazem um mundo não-linear parecer seguir uma progressão reconfortante de uma única reta ordenada. Para tornar isso possível, os pesquisadores precisam expurgar tudo que não se encaixa, isolar o ruido para se concentrar no sinal.
Credito de Imagem: https://abcmedseg.com.br/ruido-no-ambiente-de-trabalho
Mas em sistemas caóticos, o ruido importa. Faz alguma diferença que 99,8% da viagem do Titanic tenha transcorrido sem nenhum problema? Ou que a Dilma Roussef tenha completado 41% do mandato, antes de sofrer impeachment?
Apesar dos tremendos avanços na tecnologia, as regressões lineares continuam reinando nas pesquisas sociais. No entanto, elas são incapazes de resolver muitos dos problemas que decorrem da complexidade e do caos.
Num mundo sem regras e governado pelo caos, em que vivemos, a trajetória de nossa vida, nossa sociedade e nossa história, podem ser desviadas para sempre por algo tão pequeno como descer de um trem numa pequena cidade no Japão e ficar encantado com ela ou algo tão efêmero como uma camada passageira de nuvens (veja a Parte 1 do artigo).
É por isso, que nenhuma dose de educação financeira, por melhor que seja a intenção, é capaz sozinha de fazer todo mundo decidir poupar. É por isso, também, que não há educação financeira que consiga fazer alguém poupar ininterruptamente por 30,40 anos, ainda que a decisão de poupar tenha sido tomada.
Ao tentarmos explicar questões sociais, ignoramos tolamente os acasos. Imaginamos que as alavancas da mudança social e as engrenagens da história são limitadas e não-caóticas. Nos apegamos a uma versão simplificada da realidade, na esperança de descobrir padrões estáveis.
Quando temos que escolher entre uma incerteza complexa e uma certeza reconfortante – porém, errada – muitas vezes escolhemos essa última.
Educaçāo financeira para fazer as pessoas pouparem é importante, é necessária, mas é insuficiente como soluçāo isolada. Precisa ser acompanhada de outras iniciativas, para contornar a naturesa humana que impede as pessoas de se engajarem com previdencia complementar.
Está aí ciencia do coportamento e suas soluçōes, como a adesāo automática, para mostrar isso.
O proposito principal das pesquisas em ciências sociais é prevenir problemas que podem ser evitados e melhorar a prosperidade humana. Existe uma maneira melhor do que regressōes lineares para lidar com o estudo de questões sociais, tem a ver com a Teoria do Caos e Sistemas Complexos, mas isso é assunto para outro artigo.
Grande abraço,
Eder.
Opiniōes: Todas minhas | Fonte: “The forces of chance” escrito por Brian Klaas.
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