De Sāo Paulo, SP.
No Brasil, onde a enorme população de baixa renda passou a ter largo acesso a smartphones, meios digitais de pagamento e Internet de banda larga, surgiu uma fenômeno persistente e teimoso: o vício da jogatina online.
Foi assim que tudo aconteceu.
O problema das bets no Brasil está longe de ser único no mundo. Desde o meio da década passada, o alarme vem soando no Brasil, no Quênia, em vários países do continente Africano, da América Latina e em outros cantos do mundo.
As poucas histórias de enriquecimento rápido com as bets se contrapõem aos casos de famílias destroçadas, gasto de todo o dinheiro do aluguel, da mensalidade da faculdade ... e até suicídios.
As apostas no Brasil não são uma questão inteiramente digital, nem muito menos um hábito novo. Os pontos de jogo do bicho e as casas lotéricas, estão presentes há muito tempo na paisagem urbana das cidades brasileiras.
Aos poucos, os jogos foram saindo do mundo real e pulando para o mundo online, turbinados pela disseminação de tecnologias, tipo celular, WiFi e meios de pagamento instantâneo, como o PIX.
Hoje, você pode jogar praticamente em qualquer lugar: na escola, no metrô, na praia ou numa canoa descendo o rio Amazonas. A facilidade de acesso online às plataformas de apostas, tem aumentado a participação nos jogos.
Não por acaso, as bets tem se disseminado em países onde o futebol é considerado o esporte nacional, como Brasil, Chile, Mexico, Senegal (sede da Copa Africana de 2021), Nigeria e até a empobrecida República Democrática do Congo.
Se por um lado a criação do PIX pelo Banco Central causou uma revolução dos meios de pagamentos moveis, desempenhando um papel crucial para a inclusão financeira de milhões de pessoas da economia informal e democratizando o acesso ao sistema financeiro, por outro, o PIX representa um paradoxo por ter turbinado as bets.
O mote da “previdência complementar para todos”, está sendo atropelado pelo desperdício de dinheiro em jogos de azar, drenando o pouco que tem uma camada da população que vive em circunstâncias econômicas frágeis.
Pesquisa do DataFolha mostra que 30% dos jovens brasileiros entre 16 e 24 anos já apostaram em bets e 70% dos universitários com idade média de 21 anos jogam regularmente.
No Quênia, 84% dos jovens (fonte: GeoPoll) já apostaram em bets e um terço destes aposta diariamente. De acordo com Fabio Ogachi – professor de psicologia da Universidade Kenyatta, em Nairobi:
“A maioria das pessoas que aposta em bets não o faz por diversão, mas porque quer ganhar dinheiro e uma grande percentagem mostra sinais de vicio em jogos de azar: jogam para recuperar $$$ perdido, apostam cada vez mais e mentem sobre o hábito de jogar”
O maior driver do fenômeno das apostas eletrônicas tem sido a tecnologia.
“O smartphone tem sido usado por anos e tornou parte de como conduzimos os negócios. Quando as apostas online surgiram, encontraram o sistema ideal para se espalhar”
Quando inclusão financeira não é o bastante
O fato dos pagamentos digitais via PIX terem se tornado tāo onipresentes no Brasil - e alimentado uma epidemia de apostas online – foi praticamente um acidente da história.
O PIX foi lançado em fevereiro de 2020 como um experimento do Banco Central, que buscava baratear transferências financeiras e pagamentos via boletos e TEDs.
A tecnologia já existia desde 2016, quando Ilan Goldfajn, Presidente do BACEN na época, sinalizou que o Banco Central iria lançar uma ferramenta inspirada no Zelle, fintech americana de pagamentos digitais P2P, "pessoa para pessoa".
A ideia original do novo meio de pagamento era usar o celular para permitir operações financeiras, como transferências e pagamentos, em até dez segundos.
De acordo com levantamento realizado pela FGV, cem dias após sua adoção o PIX era conhecido por grande parte dos brasileiros e mais de 70% haviam cadastrado ao menos uma chave de acesso. O custo não era o maior motivador para uso, o principal interesse estava relacionado à facilidade e rapidez do sistema de pagamento num país com 262,3 milhões de celulares (set/2024, ANATEL) ou 1,2 aparelhos por habitante.
Hoje já são feitas mais de 220 milhões de transações por dia e estima-se que terão sido movimentados R$ 27 trilhões em 2024 via PIX, o dobro do PIB do país. O PIX é um sucesso! Até vendedores de bala e de panos de chão aceitam PIX nos semáforos das capitais brasileiras.
Paralelo a isso, a ascensão das mídias sociais permitiu que as pessoas enxergassem a melhor situação econômica de amigos e parentes.
“As pessoas estāo se comparando não apenas com os vizinhos, mas com todo mundo, até com estranhos do outro lado do mundo. Isso leva a um nível de frustração ainda maior”, diz Ogachi.
Bets se transformam no novo ganha pāo
Sem capacitação, formação acadêmica, profissionalmente defasados e diante da dificuldade de conseguir um emprego na folha, os jovens brasileiros tem desistido de procurar trabalho formal e se voltado para empreender.
Num país no qual uma faxineira não tem conta em banco, mas tem um smartphone e de acordo com o IBGE, 92,5% dos domicílios possuem acesso à Internet (88% da população acima de 10 anos de idade), o celular passou a ser “a” ferramenta de trabalho.
Entregadores de iFood, motoristas de Uber e tantas outras atividades, tornaram essa, a era da economia por aplicativo.
Foi nesse contexto que surgiram as plataformas de apostas online, as bets, que ao encontrar um ambiente favorável, se disseminaram. É possível encontrar, hoje, múltiplos sites de aposta, de corrida de cachorros a e-casinos de ping-pong a corridas de fórmula-1 e até (claro) futebol.
O que passou a acontecer pode ser entendido perfeitamente por uma frase dita por um jovem Queniano de 26 anos, chamado Bill Kirwa:
“Tomado pelo frenesi das bets, às vezes optava por deixar de comer para apostar. Convencido de que poderia ganhar das casas de apostas analisando resultados passados, comecei a apostar valores cada vez maiores. Em certo momento, apostar tinha se tornado uma atividade central para mim”
No Quênia, o termo “betting”, apostar online, é considerado um trabalho. As pessoas acreditam que ao se dedicarem genuinamente a apostar, ao dedicarem tempo para fazer boas análises, elas podem ganhar dinheiro.
Muitos jovens brasileiros estão indo por esse mesmo caminho, que tem um desvio oculto ainda pior. Uma pesquisa da ANBIMA sobre uso de instrumentos financeiros, chamada Raio X do Investidor, mostrou que 8% a 10% das pessoas que responderam a pesquisa acreditam que as bets são um tipo de investimento. É o mesmo que considerar o jogo do bicho um investimento ...
Pode-se até ganhar no curto prazo, mas no longo prazo, obviamente, essa crença está errada: apostas esportivas não são um negócio nem um investimento que depende de habilidade, capacitação ou conhecimento da atividade que seja. Os resultados dos jogos são produto do acaso, da incerteza, do caos de um universo sem lei, algo que nem as probabilidades são capazes de prever.
Mesmo assim, com muitos jovens comprando a narrativa errada ou colocando fé na própria sorte, o segmento de bets explodiu.
Um hábito nada fácil de abandonar
Na medida que as bets se entrincheiraram entre os jovens e foram rapidamente se consolidando, seguiu-se o vicio, transformando o hábito de jogar muito mais do que numa epidemia de saúde publica, mas em um gigantesco problema econômico-social.
O jornal científico The Lancet publicou recentemente o resultado de um estudo feito por uma comissão de saúde pública sobre jogos de azar, estimam que 9% dos adultos e 16% dos adolescentes que apostam em jogos online, têm dependência.
E olha que esses números não estão nem mapeando os distúrbios psicológicos decorrentes dos problemas socioeconômicos causados pelas bets.
O mercado de 199 marcas de bet autorizadas a funcionar no país tira $$$ do consumo, R$ 117 bilhões/ano de acordo com a Confederação Nacional do Comercio e gera crise de endividamento, comprometendo a renda futura das famílias.
Os mais afetados? Famílias de baixa renda. Beneficiários do bolsa família gastaram R$ 3 bilhões via PIX em sites de apostas, somente em agosto/2024 (fonte: BACEN)
Se a “previdencia para todos” tivesse sido atingida, o problema das bets seria ainda pior, veríamos a poupança de longo prazo sendo drenada para apostas online.
É muito difícil convencer alguém que nunca foi para a escola, sobre o funcionamento dos mercados. Principalmente quando apostar é tāo fácil e conveniente.
Um smartphone e uma chave PIX estão sempre ao alcance de qualquer um, ali, no bolso da turma, que acha que a sorte grande pode estar a seu favor, na próxima bet ...
Grande Abraço,
Eder.
Opinōes: Todas minhas | Fonte: “How mobile money supercharged Kenya’s sports betting addiction”, escrito por Jonathan W. Rosenarchive.
Nenhum comentário:
Postar um comentário