De São Paulo, SP.
No começo do ano de 1985, no penúltimo ano do meu curso de Ciências Atuariais na UFRJ, consegui meu primeiro estágio. Foi no departamento de estatística da ARSA – Aeroportos do Rio de Janeiro S/A, atual INFRAERO.
Junto com os demais estagiários fomos encarregados de conduzir, do começo ao fim, uma pesquisa sobre a opinião dos usuários em relação a sinalização vertical do Aeroporto Internacional do Galeão.
Elaboramos o questionário para coleta dos dados, definimos a amostragem estratificando gênero e faixas etárias, fizemos as entrevistas com os usuários do terminal, tabulamos os dados e preparamos o relatório final.
Entrevistei centenas de pessoas ao longo de alguns meses.
No final daquele ano terminou o estágio. No começo de 1986 sai de férias e fui com alguns amigos “mochilando” para Machu Piccho - Perú. Pegamos um ônibus do Rio de Janeiro para Corumbá – MT, atravessamos a fronteira a pé e entramos no Trem da Morte para Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia.
De Santa Cruz fomos para La Paz e de lá para Machu Piccho. Resolvemos esticar a viagem para Lima, no Perú, mas naquela altura o dinheiro estava acabando e as férias também. Telefonei para meu pai pedindo ajuda.
“Não vou pagar uma passagem comercial”, avisou meu pai, mas como ele era oficial da FAB, conseguiu um voo da Força Aérea Peruana que me levou de Lima no Perú para Assis Brasil, no Acre – uma hora e meia de voo.
No meio da viagem uma tempestade tropical nos forçou a pousar numa pista de terra, num lugarejo no meio do nada em plena floresta Amazônica, onde tivemos que pernoitar até poder seguir viagem na manhã do dia seguinte.
Os passageiros do avião, civis em sua maioria, ficaram perambulando pelo vilarejo. Então, notei uma senhora que me pareceu familiar. Sou bom fisionomista, mas péssimo para lembrar nomes, senti que a conhecia de algum lugar, mas não lembrava de onde.
Conversa vai, conversa vem, descobri que a havia entrevistado no Aeroporto Internacional do Galeão no ano anterior, para aquela pesquisa que mencionei acima. Caramba, que coincidência!!! Encontrar aquela pessoa “desconhecida”, no meio da Amazônia.
Não para por aí. Quase 37 anos depois, em junho de 2022, fui contratado como assessor do presidente do BNDES – Gustavo Montesano – para contribuir com a melhoria da governança de supervisão da FAPES (fundo de pensão da empresa).
Da minha sala no escritório do BNDES em São Paulo costumo conversar com os funcionários que ocupam estações de trabalho bem em frente da porta, sempre aberta. Entre eles, a Dona Lúcia, uma simpática telefonista que está no BNDES desde 1977.
Semana passada durante uma dessas conversas, perguntei se ela era de São Paulo e ela respondeu que era de Corumbá – MT. Falei, então, que eu havia passado por Corumbá nos anos 80, contei minha aventura para Machu Piccho e depois Lima.
Ouvindo minha história ela disse que já havia estado no Perú e também na Amazônia. Tive uma estranha sensação e perguntei: “a senhora já viajou em algum avião da Força Aérea Peruana?”. E ela: “já viajei sim”. Pois é, reencontrar a Dona Lúcia quase quatro décadas depois, seria uma nova coincidência ou uma incrível continuação da anterior?
O que são as coincidências?
Diante de uma coincidência, a frase mais ouvida é: “Qual a chance disso acontecer”?
Uma coincidência não é apenas algo cuja ocorrência é improvável. A caixinha de surpresas que rotulamos de “coincidência” está cheia de uma incrível variedade de experiências - totalmente diferentes umas das outras. Mesmo assim, algo além da raridade nos compele a agrupa-las numa mesma categoria de eventos.
Elas têm a mesma textura, um sentimento de que aconteceu uma dobra no tecido da vida, uma sensação de conspiração do universo, do espaço e do tempo.
A pergunta é: de onde vem esse sentimento? Por que nos chama a atenção? Por que notamos determinadas maneiras que nossas vidas colidem com os acontecimentos e ignoramos outras?
Alguns diriam que é porque as pessoas não entendem de probabilidade. Num paper de 1989 intitulado Methods to Studying Coincidences, os matemáticos Persi Diaconis e Frederick Mosteller pensaram em definir coincidência como “um evento raro”.
Porém, concluíram que uma definição assim seria demasiadamente ampla para permitir um estudo mais cuidadoso. Então, decidiram definir coincidência como:
“Uma confluência surpreendente de acontecimentos, percebidos como significativamente relacionados, sem conexão causal aparente"
A matemática das coincidências
Sob o ponto de vista puramente matemático, os eventos de uma coincidência são aleatórios, sem nenhuma relação significativa e não deveriam causar tanta surpresa porque acontecem o tempo todo.
Eventos extremamente improváveis são comuns, explica o estatístico David Hand em seu livro “The Improbability Principle”. O que acontece, de forma geral, é que os seres humanos no dia a dia não são muito bons em raciocinar sobre probabilidade de forma objetiva.
Por um lado, as pessoas são bastante liberais em rotular uma situação como coincidência. Quando você conhece alguém que faz aniversário no mesmo dia que você, isso é considerado uma coincidência divertida. O mesmo vale se for o dia do aniversário da sua mãe ou de um irmão e não faz muita diferença se isso acontecer um dia antes ou depois do aniversário.
Há diversas datas de aniversário que podem chamar nossa atenção pela coincidência. No entanto, somos 7 bilhões de bípedes pensantes no planeta e de acordo com a Lei dois Grandes Números, com uma amostra grande o suficiente a chance de encontrar na Terra pessoas com datas de aniversário iguais não deveria ser nada surpreendente
Se uma grande quantidade de pessoas joga na Mega-Sena, haverá um vencedor. Para quem ganha é algo inusitado, um milagre, mas o fato de alguém ter ganhado não surpreende o resto, que não ganhou.
Mesmo dentro do limitado ambiente que circunda nossas vidas, há toda uma gama de oportunidades para as coincidências acontecerem. Considerando todas as pessoas que você conhece e todos os lugares que você frequenta e que elas frequentam, existe uma boa chance de você esbarrar em algum momento com alguém conhecido.
Ainda assim, parece uma coincidência quando acontece. Quando uma surpresa dessas ocorre, não pensamos em todas as vezes que poderia ter acontecido, mas não aconteceu. Se incluirmos, então, as vezes em que quase aconteceu – você e um amigo estiveram no mesmo lugar, no mesmo dia, mas em horários diferentes – o número de possíveis coincidências fica bem maior.
A coincidência está nos olhos de quem as vê
Para provar como os eventos improváveis são comuns, os matemáticos costumam usar o chamado problema dos aniversários.
Quantas pessoas precisa haver num quarto para que a chance de duas delas fazerem aniversário no mesmo dia ser maior que 50%? A resposta é: 23 pessoas.
Mas as pessoas não pensam nesses termos. Elas não pensam na chance dessa coincidência acontecer com qualquer um no quarto. As pessoas pensam: “... qual a chance disso acontecer comigo, aqui e agora?”, diz Bernard Beitman, um psiquiatra autor do livro Connecting With Coincidence.
Torna-se, então, praticamente impossível calcular a probabilidade de acontecerem coincidências mais complicadas do que datas de aniversário.
“Uma coincidência em si está nos olhos de quem a vivencia”, diz o professor de riscos da Universidade de Cambridge, David Spiegelhalter. Se um evento raro acontecer numa floresta e ninguém notar, ninguém se importar, não será de fato uma coincidência.
Há algo além da matemática nas coincidências?
O Prof. Spiegelhalter coleciona coincidências desde 2011, já catalogou mais de 5.000 histórias reais. As histórias foram separadas por categoria (gráfico abaixo), mas seria preciso uma mineração de dados (textos) para uma análise mais detalhada.
Minha história cai na categoria “encontrar uma ligação com alguém que você conheceu”. Mas se trata de um tipo diferente de conexão, diferente de ter vivido na mesma casa que alguém ou algo assim. É uma conexão muito forte, não é tipo: os dois estiveram na Amazônia Peruana na mesma época e lembram disso depois de tanto tempo.
O mais doido não é ter estado no mesmo avião militar que alguém e depois de 40 anos trabalhar no mesmo lugar que a pessoa, mas sim de ter descoberto isso.
E se eu não tivesse contado a história das minhas férias em Machu Piccho? E se a mesa da Lúcia fosse do outro lado do andar? Ainda assim a coincidência estaria presente ali, mas oculta. Sem saber, eu estaria separado por alguns metros da pessoa que esteve comigo na aventura da Amazônia.
A coincidência teria ocorrido fisicamente, sem ninguém notar. O surpreendente não é que essas coisas aconteçam, é que as notamos. A Teoria das Coincidências do Prof. Spiegelhalter é que as coincidências acontecem com determinadas pessoas.
Em seu estudo, o psicanalista da Universidade de Virginia, Bernanrd Beitman, descobriu que certas personalidades são mais propensas a experimentar coincidências: pessoas que se consideram religiosas ou espirituais, pessoas mais sensíveis na busca de significado e pessoas que costumam relacionar informações do mundo exterior à suas próprias experiências.
Pessoas mais reservadas não costumam notar as coincidências. Diferente daquelas que costumam falar com todo mundo (“euzinho” aqui) no ônibus, no elevador, com o caixa do supermercado, para as quais as conexões surgem mais frequentemente.
Beitman que é inglês, portanto reservado, diz que as coincidências acontecem o tempo todo, mas é preciso nota-las. Ele conta que aos 8 ou 9 anos de idade perdeu seu cãozinho, foi a delegacia de polícia perguntar se alguém encontrou, mas ninguém havia visto o animal. Chorando muito, pegou o caminho errado na volta para casa e ... lá estava seu cachorrinho. Foi assim que se interessou por coincidências.
Para Beitman, probabilidade não é o bastante para explicar as coincidências. A estatística, diz ele, pode descrever a chance de acontecer, mas não vai muito além disso. Aleatoriedade, completa Beitman, não é suficiente para explicar as coincidências, há algo mais nisso do que percebemos.
O Psicanalista Suíço, Carl Jung, também pensava assim. Jung surgiu com uma explicação alternativa. Para ele as coincidências eram eventos cujo significado não podiam ser explicados apenas por causa e efeito. Deveria haver outra força fora da causalidade para explica-las, a que ele chamou de “sincronicidade” e descreveu no livro “Synchronizität als ein Prinzip akausaler Zusammenhänge”, de 1952 como “Princípio da Conexão Acausal”.
Para Jung as coincidências são produzidas pela força da sincronicidade e podem ser consideradas um vislumbre de outra de suas ideias – o unus mundus ou “um mundo único”. O unus mundus de Jung é a teoria de que existe uma ordem subjacente e uma estrutura unificada da realidade, uma rede que conecta tudo e todos a partir da qual tudo emerge e para a qual tudo retorna.
A sincronicidade não explicaria apenas as coincidências, mas também a telepatia e fantasmas. Os estudos mostram que as pessoas mais propensas a acreditar em coincidências são também as mais propensas a acreditar em forças ocultas. Esse é o problema em tentar encontrar uma explicação mais profunda para as coincidências que vá além da aleatoriedade – pode rapidamente descambar para paranormalidade.
Fora do domínio da ciência
Beitman, assim como Spiegelhalter, classificou as coincidências, mas criou categorias mais amplas indo além dos eventos que tem origem no mundo exterior e incluiu aqueles que surgem de sentimentos e pensamentos
A categoria que mais chama a atenção de Beitman é a dos acontecimentos que ocorrem em nossa mente e extravasam para o mundo exterior, que ele chamou de “simultaneopatia”. O termo cunhado por ele descreve um sentimento, dor, reação ou emoção de alguém que está distante.
“Em 2021 meu pai de 88 anos foi internado às pressas no HFAB – Hospital da Força Aérea Brasileira em São Paulo. Ele tinha Parkinson há anos e estava com pneumonia dupla. Quando deu entrada por volta das 18:00 horas do dia 24 de julho na UTI, já estava inconsciente e muito debilitado.
Era uma sexta feira. No dia seguinte, depois da internação, fui para São Jose dos Campos e dormi na chácara onde minha mãe e ele moravam, para dar apoio a ela.
No sábado à noite, por volta das 22:00 horas, estávamos na sala conversando com minha mãe quando de repente ela ficou branca e numa ânsia, vomitou. Limpamos tudo, a colocamos para dormir e junto com minha esposa fomos para o quarto.
Às 22:30 horas do próprio sábado o hospital telefonou para meu celular, era da UTI dando a notícia de que meu pai havia falecido por volta das 22:00 horas.
Muitas pessoas têm experiências assim e é aqui que começamos a deixar o reino da ciência e entrar no reino do sobrenatural. É notável como as coincidências entelaçam esses mundos.
Não seria justo rotular as pessoas que enxergam significado nas coincidências como irracionais. O processo pelo qual percebemos as coincidências fazem “parte de uma ampla arquitetura cognitiva, desenhada para que o mundo a nossa volta faça sentido”, diz Magda Osman, uma professora adjunta de psicologia na Queen Mary University, em Londres.
Gostamos de padrões, procuramos por eles em todo lugar porque através deles podemos entender e de certo modo, controlar o mundo. Se toda vez que você mexe num interruptor uma luz acende, você entende que o interruptor controla a lâmpada.
Quando uma pessoa enxerga um padrão numa coincidência, não podemos contra argumentar afirmando com toda certeza que se trata apenas de um evento aleatório. Da mesma forma, não se pode assegurar que exista um mecanismo de causa e efeito nele porque para afirmar isso, teríamos que ser capazes de conhecer o mundo perfeitamente, diz a Profa Magda Osman.
No final acaba dependendo daquilo em que você acredita. De um lado a aleatoriedade, do outro Deus e na grande zona intermediária as “coincidências suspeitas”. Como diz Thomas Griffiths, Prof. de Psicologia e Ciência Cognitiva na Universidade da Califórnia – Berkeley, descrevendo uma mera coincidência:
“Para mim, uma parte chave do que torna algo uma coincidência é que ela cai entre dois reinos: o da certeza de ser falso e o da certeza de ser verdadeiro”. Se uma coincidência suspeita, de determinada natureza, começa a acontecer com certa frequência algo incerto pode se transformar em certeza.
É assim que surgem as descobertas cientificas – “Humm, todas essas pessoas com cólera parecem estar bebendo agua do mesmo poço” – mas é assim também que surgem as superstições – “Toda vez que uso meias coloridas tenho excelentes reuniões no conselho deliberativo”.
Você pode ficar nessa zona intermediária entre a suspeita e a certeza. Isso não é muito diferente das coincidências que se apresentam como evidencia de que existe algum tipo de princípio oculto de ordenamento da realidade – ainda que desconhecido. As conexões que tem algum significado parecem ter sido criadas de proposito, por alguma razão, mesmo que essa razão não possa ser explicada.
Ou como diz Beitman: “As coincidências nos alertam para os mistérios escondidos à plena vista de todos”.
Ninguém é capaz de provar que existe algo por trás das coincidências, mas é definitivamente impossível provar que não há. Então, não sobre muito mais a dizer.
O lugar que você se posiciona no espectro das tentativas de explicar as coincidências, provavelmente dizem muito mais sobre você do que sobre a realidade.
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Só para constar, eu e Dona Lúcia
fizemos uma aposta na Mega-Sena da virada de 2022 – 2023. Se ganharmos o quase
meio bilhão $$$ do prêmio acumulado, nossos caminhos terem se cruzado duas vezes terá sido mais do que mera coincidência, mas isso eu conto para vocês outro dia ...
Grande abraço,
Eder.
Fonte: Coincidences and the Meaning of Life, escrito
por Julie Beck
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