sexta-feira, 31 de março de 2023

QUANDO FALHAS DO MERCADO COLIDEM COM FALHAS DE SUPERVISÃO: BANCOS, BOLHAS E FUNDOS DE PENSÃO - PARTE 2

 


PARTE 2 – LIÇÕES PARA OS FUNDOS DE PENSÃO


James Grant, escritor e editor de finanças americano, tinha um aforismo que dizia: “o progresso é cumulativo em ciências e engenharia, mas cíclico em finanças”.


A bagunça que estamos vendo nesse mês de março parece a história repetindo a si mesma: reguladores gerando uma crise ao tentar debelar a anterior, defensores do livre-mercado descobrindo repentinamente as virtudes da intervenção estatal e professores de finanças das universidades federais repetindo que o capitalismo é injusto, está morto ou ambos.


A história da regulação do sistema financeiro é, basicamente, uma história de gestão de crises.


Todos nós que trabalhamos no sistema de fundos de pensão temos uma gigantesca responsabilidade em assegurar um futuro tranquilo para milhões de pessoas. Não podemos errar na gestão de riscos, não existe segunda chance quando se trata de previdência complementar.


Lições que podemos tirar para os fundos de pensão.


Lição # 1: Tenham uma estratégia de negócios sólida


A bolha das empresas ponto-com foi uma bolha especulativa, criada pela rápida acessão das empresas de Internet.


Num curto período de apenas cinco anos, que terminou em março de 2000, as empresas de tecnologia se preocuparam em ganhar market share e focaram na construção de marcas e criação de networking.


O nome do jogo era se tornar grande rapidamente, então, as empresas sacrificaram a lucratividade em nome do crescimento. O frenesi das ponto-com levou a Nasdaq (Nasdaq Composite Index) aos céus, atingindo no dia 10 de março do ano 2000 o maior pico de sua história: 5.048,62 pontos.


Então, assim do nada, a bolha estourou - como elas sempre estouram - e uma empresa após a outra foi implodindo, alimentando uma queda livre de todo o setor de Internet que perdurou pelos dois anos e meio seguintes.


No final, a Nasdaq havia perdido 78% de seu valor.


Investidores e gestores se deram conta de que grandes investimentos e a pressa de fazer um IPO para abrir o capital, não adiantam nada se não houver por trás um solido modelo de negócios.


Foi o que mostraram startups como a Amazon, eBay e outras que sobreviveram à ascensão espetacular e queda colossal de muitas ponto-com e se tornaram algumas das empresas mais admiradas do mundo.


Entre os anos 80 e 90 o Brasil viveu um boom de crescimento na quantidade de fundos de pensão, patrocinados por empresas privadas nacionais e multinacionais.


Foram criados cerca de duas centenas de fundos de pensão apenas no período.

Em meio aquele crescimento todo, ali pela primeira metade dos anos 90, ganharam força os fundos de pensão multipatrocinados. Buscando novas receitas, face a perda de rentabilidade com o float que se seguiu ao controle da inflação, muitos bancos decidiram criar fundos multipatrocinados para atrair investimentos de longo prazo.


Na época fui chamado por ao menos três bancos - o já extinto Banco Multiplic foi um deles, o CCF – Crédit Commercial de France foi outro - que procuravam profissionais para tocar o novo negócio.


Propaganda do Banco Multiplic, inicio dos anos 90


Fiquei impressionado com as projeções que vários deles faziam. Resumindo, era assim: “temos uma base de 1.000 clientes corporativos, se 10% fizerem um plano de previdência e contribuírem em média com X reais, acumularemos um patrimônio de Y milhões nos três primeiros anos, Z milhões no quinto ano ...”.


Subestimaram a complexidade, a dificuldade e o custo de gestão dos passivos (sistemas, serviços, pessoas). Não tinham a mínima ideia do tempo que uma empresa leva estudando a criação de um plano de previdência - cerca de 10 anos naquela época, mas, acima de tudo, não tinham uma estratégia sólida.


Cerca de uma dúzia de bancos criou fundos multipatrocinados nos anos 90, metade fechou no primeiro ano após a implantação, vários não passaram do terceiro ano e hoje restam uns dois, talvez três. Previdência complementar é um negócio de maturação lenta, construído um tijolinho em cima do outro, com breakeven que leva anos a fio.


Tem pouca aderência com estratégias de bancos, que visam resultados quase que imediatos.   


Vemos hoje um boom nos planos de previdência criados por entes federativos (estados e municípios). Foram mais de 600 nos últimos dois anos, com fundos de pensão assumindo a administração desses planos. Fico pensando no que isso vai dar. Será que há uma estratégia?


Nesse momento em que as entidades fechadas de previdência complementar estão se abrindo ao mercado, é crucial que tenham uma estratégia, muito, mas muito, bem definida, muito bem desenhada, muito bem pensada.


Lição # 2: Há indivíduos, homens e mulheres, há famílias e há confiança


Em 1907, em meio aos juros crescentes e queda do mercado de ações, dois banqueiros de Nova York tentaram especular com as ações de uma mineradora de cobre. A tentativa deu ruim, o esquema colapsou e afetou os dois bancos. Os correntistas, então, correram para salvar seus depósitos.


Um dos bancos, o Knickerbocker Trust, ficou sem dinheiro para pagar aos correntistas, quatro dias depois, fechou as portas.   



John Pierpont Morgan – sim, ele mesmo, J.P. Morgan - o proeminente banqueiro e figura da alta sociedade, viu nisso uma
 obrigação e uma oportunidade. Reuniu os banqueiros de Nova York em sua mansão na Madson Avenue no 219, diz a história, trancou a porta e colocou a chave no bolso.


“Só vocês que estão aqui”, proclamou Morgan, “podem pôr fim a essa situação”. Primeiro ele falou da obrigação: para salvar o sistema, no qual ele própria construíra sua fortuna, emprestaria US$ 8 milhões (US$ 250 milhões em dinheiro de hoje) a um segundo banco que estava prestes a quebrar depois do Knickerbocker, o Trust Company of America.


Então, convenceu uma dúzia de banqueiros presentes e o Departamento do Tesouro dos EUA a depositarem US$ 70 milhões em outros bancos vulneráveis. O “Pânico de 1907” acalmou e J.P. Morgan salvou o sistema financeiro (pela segunda vez).


Confiança


O que J.P. Morgan entendeu é que bancos e por extensão a economia, não são construídos com ouro, trabalho, máquinas, nem planilhas, mas sim com confiança.

A confiança de que os depósitos estarão lá quando o correntista precisar.


Todo banco é vulnerável a uma corrida. Se todos os 67 milhões de correntistas do Bank of America quiserem tirar seu dinheiro simultaneamente, no mesmo dia-semana-mês, o banco quebra. Isso vale para o Bradesco, Itaú e Banco do Brasil.


Por isso os bancos são protegidos por uma rede de órgãos do governo federal, o Tesouro Nacional, o Banco Central, o Fundo Garantidor de Crédito ...


Esse mecanismo de apoio governamental existe, em parte, porque J. P. Morgan em 1907 não viu apenas uma obrigação. Ele viu, também, uma oportunidade.


Quando o pânico começou a arrefecer, Morgan pediu de volta os empréstimos que havia feito e foi às compras de empresas em dificuldade e de ativos desvalorizados. Comprou seis bancos, incluindo o Trust Company of America, uma companhia de navios a vapor e a segunda maior siderúrgica americana (ele já era dono da 1ª).


J.P. Morgan em 1907


Por volta de 1913 J.P. Morgan & Co. tinha assento no conselho de 112 empresas de capital aberto, correspondendo a 80% da capitalização da bolsa nos EUA.


O episódio de 1907 mostra que bancos insolventes precisam de salvação, mas mostram também que não se pode confiar em bilionários para salvá-los. Por isso, em 1913, o congresso americano aprovou as leis que criaram o banco central, levando às proteções existentes hoje em dia.


Não é mera coincidência que as gerações vindas depois de 1907 tenham investido no coletivo e que as sociedades tenham prosperado. Nos anos 1920 vimos o surgimento da previdência social no Brasil, na década de 1930 a CLT que protegeu os trabalhadores, nos anos 1940 foi criado o Sistema “S” para capacitação profissional das pessoas etc.


Eles compreenderam, naquele momento, que temos a obrigação de fazer parte de uma solução mais ampla, apoiados nos ombros da democracia.


Fundos de pensão existem para assegurar que seus participantes tenham um futuro mais seguro. As pessoas colocam dinheiro num plano de previdência complementar porque acreditam que isso lhes trará segurança financeira mais adiante na vida.


Se os planos de previdência, hoje todos de contribuição definida, começarem a se mostrar incapazes de entregar essa segurança financeira ou se o dinheiro não estiver lá quando as pessoas mais precisarem, a confiança nos fundos de pensão sumirá numa piscada de olhos.


As pessoas têm memoria fraca, lá pelos anos 1980 a parte da obrigação de J.P. Morgan já tinha sido esquecida e a parte do oportunismo se tornado o modelo vigente. Margaret Thatcher, ficou famosa na época por cunhar frases resgatando o velho coletivismo.


“Não tem esse negócio de sociedade”, dizia a Dama de Ferro, “tem homens e mulheres, indivíduos e tem as famílias”.


Margaret Thatcher


Em 2010 a confiança foi considerada ineficiente e as cryptomoedas ganharam proeminência com a promessa de “transações que não dependem da confiança”.


Só que isso não existe. Confiança em fundos de pensão não é uma conquista. Os resultados prometidos são entregues ou não. Se não forem, não existirá confiança que os deixe de pé.


Lição # 3: Precisamos de uma nova cultura de gestão de riscos


Os fundos de pensão brasileiros estão super alavancados em títulos do tesouro nacional, que hoje representam cerca de 86% do seu patrimônio total.


Concentrar os investimentos em títulos públicos em função das altas taxas de juros, pressupondo que o tesouro nacional nunca terá problema, é o mesmo que perseguir altos retornos ignorando a máxima do Duke de Wellington, que dizia: “Juros altos são um outro nome para título ruim”.


Comprar títulos do governo que pagam uma taxa de juros fixa no longo prazo, quando se tem uma taxa de juros do passivo que flutua no curto prazo, requer um casamento perfeito na gestão dos riscos dos ativos e dos passivos (ALM).


Isso é tão básico em finanças, que todo mundo presumiu que não aconteceria problema, mas aconteceu, com o Silicon Valley Bank e não foi a primeira vez que isso acontece no sistema financeiro.


O sistema de fundos de pensão no Brasil já passou por vários episódios embaraçosos nas últimas décadas, tratados pela alta gestão dos demais fundos de pensão como casos isolados, muito mais do que como um problema sistêmico na cultura de gestão de riscos.


O dinheiro barato com risco baixo, dos títulos do governo, está ajudando a criar uma bolha que vem crescendo nos fundos de pensão e também nos bancos.

Se o Banco Central do Brasil não tivesse puxado as taxas de juros tão fortemente para cima, os fundos de pensão provavelmente estariam hoje buscando outras oportunidades de investimento e teriam patrimônios mais diversificados.


Mas o papel do BACEN é se preocupar com a economia como um todo e atacar a inflação, não manter as taxas baixas para forçar fundos de pensão a se diversificarem.

Precisamos de uma nova cultura de gestão de riscos.

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O debate agora, em função da crise bancária, é se há um modo melhor de supervisionar e administrar os bancos. Provavelmente veremos surgir um novo conjunto de regras. A mudança mais interessante talvez seja a redefinição do que são os bancos e isso poderá ter desdobramentos para a atividade exercida pelos fundos de pensão.


Desde a crise de 2008 os reguladores americanos optaram por concentrar o monitoramento no balanço dos maiores bancos, considerados “grandes demais para quebrar”. Os testes de stress são feitos apenas nas instituições maiores que US$ 250 bilhões. O Silicon Valley Bank, considerado um banco médio, tinha ativos pouco acima de US$ 200 bilhões. O que se descobriu agora é que bancos médios também são muito importantes para quebrar.


Os reguladores dos fundos de pensão brasileiros concentram a atenção nas chamadas “Entidades Sistematicamente Importantes”, que são os maiores fundos de pensão do país. Também focam seu controle na “supervisão baseada em risco”.


Fundos de pensão são um tipo de instituição que poderá ser arrastada para uma maior regulação (especialmente se uma delas tiver problema).


As medidas adotadas pelos reguladores do sistema financeiro global não agradariam a Adam Smith, ferrenho defensor do livre mercado, mas certamente teriam feito Jean-Baptiste Colbert, ministro da economia de Louis XIV, abrir um sorriso. Colbert foi o pai do dirigismo, da ideia de que o sistema financeiro é um braço do estado.


Jean-Baptiste Colbert em trajes de gala da Ordem do Espírito Santo


Se essa ideia voltar, os bancos poderão ser redesenhados por ela.


Quando o Presidente de um fundo de pensão falava em um seminário de investimentos para jovens nos anos 1980, na medida em que ele ia fazendo a apresentação a sala (invariavelmente) ia se esvaziando.


Quarenta anos depois, nada mudou. Se continuarmos suscitando tédio nos jovens ao falar de fundos de pensão e previdência complementar, a segurança financeira futura tomará outro caminho.


Grande abraço,

Eder.



Fonte: Venture Catastrophists, escrito por Scott Galloway | New chapter of capitalism emerges from the banking crisis, escrito por John Micklethwait and Adrian Wooldridge | Bloomberg.



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