segunda-feira, 31 de maio de 2021

Sem tirar o olho do espelho retrovisor, olhamos pelo para-brisas tentando enxergar o futuro da previdência complementar

 



De São Paulo, SP.

Esse é um artigo particularmente emotivo para mim, porque fiz carreira, criei meus filhos e dediquei toda a minha vida profissional ajudando de forma modesta a desenvolver a previdência complementar no Brasil. Foi dessa janela que vi a vida passar ao longo dos últimos 35 anos. Semana passada escrevi um texto lançando algumas reflexões sobre a crise pela qual passa esse setor no mundo todo. Foi apenas um diagnóstico, sem nenhuma pretensão de prescrever um remédio para o problema.

Mas, o primeiro passo para se atacar um problema - conforme um generoso leitor postou nos comentários - é reconhecer sua existência. Então, resolvi elaborar um pouco mais sobre os acontecimentos em curso nesse quadrante da história. Os desdobramentos desses acontecimentos podem fornecer pistas sobre a estrada que nos levará a uma nova previdência complementar.

Muito do que vou partilhar com vocês aqui é um resumo do que fui aprendendo ao longo dos últimos três anos. Ao pesquisar sobre tecnologia, fui refletindo sobre os desafios das mudanças e como as organizações lidam com inovações. É difícil sintetizar tudo em um texto TL;DR e certamente vou lamentar ter que deixar algumas coisas de fora então, quem sabe, um dia essa historia tenha continuação.

Quando acompanhamos as inovações, particularmente o desenvolvimento de novas tecnologias, ao final de um mês se tem a sensação de que passou um ano inteiro. Pra mim, em termos de passagem do tempo, a sensação é que o mundo está mudando radicalmente ao final de cada semana. Olhar para trás e pinçar os fatos mais marcantes dos últimos três anos, fatos que terão consequências futuras sobre a previdência, é como tentar fixar a visão numa paisagem olhando-se da janela de um trem-bala, ela fica borrada por causa da alta velocidade (na foto, interior do trem que liga o aeroporto ao centro de Shangai).

As transformações causadas pelas tecnologias englobam tantos conceitos e aspectos fundamentais das ciências sociais, políticas e econômicas, que aprender rapidamente sobre elas antes que evoluam, ajuda a entender por que se tornarão verdades. Então, vamos lá.

As pessoas não entendem o dinheiro

Muita gente pergunta: quem garante cryptomoedas como o Bitcoin, BNB,  XRP, Ethereum, Luna, Sol, Sushi, Polygon etc.? Tente responder isso com outra pergunta: quem garante o Real, o Dólar, o Euro e outras moedas oficiais? Seriam os governos? Os militares? O PIB dos países? Deus? As notas de dólar têm impressas a frase “In God We Trust” (confiamos em Deus). Pouca gente e isso vale até para detentores de CPAs, AETQs e afins, fará a conexão correta entre dinheiro e credibilidade. O que garante o Real e a moeda de qualquer país é a “credibilidade”, i.e., a confiança de que os títulos da dívida pública serão honrados pelo governo, garantidos pela geração de riquezas, pelo PIB, com a segurança dada pelos militares e todo o resto.

É fundamental entender isso para compreender por que uma cryptomoeda amparada por credibilidade não é algo absurdo. Daí, será um pulo para aceitar a ideia de que moedas privadas podem existir. Por incrível que pareça, os mais resistentes a essa ideia tendem a ser pessoas com formação em economia ou que trabalham na área de investimentos. É surpreendente como as convicções mais firmes são as noções mais difíceis de se alterar, isso explica a razão do atual sistema financeiro ter forte chance de passar por uma enorme disruptura. Vale um gancho aqui entre previdência complementar e credibilidade. Da mesma forma que o dinheiro perde valor quando cai a crença das pessoas no governo de um país, a existência de fundos de pensão e seguradoras que vendem planos de aposentadoria fica ameaçada no momento em que as pessoas têm a percepção (certa ou errada) de que a solução para sua segurança financeira futura não pode mais ser alcançada por meio deles. Isso vale para as novas gerações, que ainda não formaram suas poupanças, tanto quanto para as antigas, cujo quinhão é administrado hoje por essas mesmas instituições.

Perguntas importam mais do que respostas

O progresso da humanidade tem a ver com a busca por explicações. Essa necessidade de entender as coisas fez nascer a crença, a credibilidade e a fé. Não dá para construir algo na base do “eu não sei”. Se os especialistas se tornam incapazes de nos dar uma resposta, nós nos imbuímos de seres superiores cujo controle e conhecimento nos absolvem de precisar explicar nossas convicções.

Isso acontece em todos os aspectos de nossas vidas, incluindo economia, política, sociologia ... e previdência. A maioria das pessoas acaba aceitando a sabedoria transmitida ao longo das gerações, através dos livros e da cultura. A escola, universidades e cursos de MBA nos ensinam a memorizar ao invés de pensar e questionar as respostas que nos são dadas. Talvez, apenas talvez, o enfraquecimento da hierarquia tenha sido uma benção para as novas gerações, porque permitiu se levantarem e começarem a inquirir mais do que a minha e as antigas gerações tinham espaço para fazer.   

De vez em quando, surgem situações, ferramentas ou circunstâncias que nos levam a buscar respostas mais profundas para questões (aparentemente) já resolvidas. A tecnologia do blockchain e os cryptoativos são algumas delas, nos forçam a perguntar coisas como: “O que é o dinheiro?”, O que é consenso? Por que isso importa? Até onde as autoridades deveriam poder avançar para cercear nossa liberdade financeira? Por que o mercado de capitais restringe acesso a oportunidades? Por que pessoas na informalidade tem dificuldade de acesso a contas bancárias? Por que planos de previdência complementar são inacessíveis para pessoas de baixa renda? Eles não precisam de segurança financeira futura? O que é segurança financeira futura? Por que é tão difícil vender planos de previdência? 

Essas perguntas são apenas a ponta do iceberg. Toda resposta começa por uma pergunta.

A previdência complementar precisa de filósofos, filósofos digitais

Entender a verdadeira transformação pela qual a sociedade está passando, aquilo que move as novas gerações, seus propósitos, suas preocupações com justiça social, natureza e privacidade e como isso tudo afeta poupança de longo prazo e investimentos, requer questionamentos profundos e desconfortáveis de princípios que erroneamente assumimos entender.

Daqui a cem anos, que coisas que parecem rebuscadas hoje acharemos normal? E das coisas que achamos normal hoje, quais perderemos, quais deixarão de existir? Por exemplo, a responsabilidade fiduciária de investidores institucionais, como a de conselheiros de fundos de pensão que investem recursos de terceiros, é maximizar o retorno dos investimentos, mantidos os riscos sob controle. Toda um “naco” da teoria econômica por trás disso terá que ser revisto quando nessa equação entrar o proposito dos donos do dinheiro. As novas gerações querem retorno sim, mas não a qualquer custo, não ao custo do bem-estar e sobrevivência delas e das gerações que virão depois delas. Acho que perceberam onde nos levou a busca desenfreada por retorno sem proposito. Como conciliar retorno com proposito? Abrir mão de parte do retorno? Quanto? Como? Quem decide? Quem é o (verdadeiro) dono do dinheiro? Como fulanizar os investimentos?

Voltamos aos cryptoativos. Uma cryptomoeda como o Bitcoin, é um ativo ao portador, igualzinho a uma nota de R$ 1,00. Se está na sua carteira, é sua. Muita gente acha que isso não é grande coisa, a turma da comunidade crypto acha que é. Independente da reação, o que ambos valorizam é o princípio do “direito à propriedade privada”. Isso é algo que todos nós achamos normal hoje, mas nem sempre foi assim na história humana.

Num mundo em que os ativos são digitais, absolutamente qualquer coisa, tenha ela valor ou não, poderá ser representada digitalmente e por conseguinte, individualizada. Abre-se a porta, por exemplo, para que eu tenha “uma parte” de um imóvel, de um aeroporto, de uma obra de arte ou dos direitos autorais de uma música, no meu saldo de conta “digital”. Eu poderei “portar” meu patrimônio no todo ou em parte, para um plano de previdência, uma instituição financeira ou transferir diretamente para um individuo, sob qualquer forma que os ativos assumam. Ou simplesmente, ficar com eles na minha carteira digital.

Isso muda tudo. Por exemplo, quem decide onde investir minha poupança de previdência complementar? Pode um fundo de pensão funcionar com cada um de nós decidindo por nós mesmos onde investir nosso dinheiro ou é preciso uma autoridade central para ditar os parâmetros para fins de interoperacionalidade e aceitação universal?

Há tantos aspectos em torno da previdência complementar que nem sabemos que existem, que quando são questionados abrem grandes portas para inovação. Muitas soluções que a primeira vista parecerão interessantes, sairão rapidamente de cena por não estarem resolvendo problemas reais ou não serem boas o suficiente. 

Aplicar princípios de filosofia pode ajudar a focar em aspectos que nunca foram pensados.

"Porquê" importa mais do que "como"

Claro que o como também é muito importante, mas quando se perde de vista o porquê o como descamba para um caminho de conveniência e compromete os objetivos. Acabamos focando nos ganhos de curto prazo quando nos deparamos com questões do dia a dia, interesses pessoais conflitantes e desejo de agradar. Nossos fundos de pensão hoje estão tão ocupados procurando a próxima inovação para melhorar a vida dos participantes, que frequentemente perdem de vista a razão pela qual, afinal de contas, nos dedicamos a busca pela segurança financeira deles. 

Se não pararmos para perguntar por que estamos nessa jornada, de nada adiantará seguir investindo no como. Acabaremos corroborando aquele ditado do filosofo romano Lucio Aneu Sêneca: “Para aquele que não sabe para onde ir, todos os ventos sopram contra”.

Construindo a partir das dificuldades

Tem um ditado antigo segundo o qual muito pode ser dito sobre a qualidade de uma pessoa, observando seus inimigos. O tamanho de uma ambição pode ser definido, frequentemente, pelos obstáculos que se encontram no caminho. 

Qualquer um que tenha tentado criar algo novo vai te dizer o quanto frustrante isso pode ser. Não há exceções. Porém, aqueles que conseguem, aprendem a transformar barreiras em oportunidades. Podemos tentar remover as barreiras, trabalhando com aqueles que as criaram ou podemos tentar contorná-las, o que geralmente leva a novas barreiras, mas de repente essas últimas podem ser mais fáceis de resolver. O processo de inovação sempre leva a novas descobertas, validando as boas ideias e tornando mais fortes as ideias que não eram tão boas assim.

Muita gente com quem converso sobre inovações na previdência complementar se mostra intimidada pela regulamentação, pelo pensamento dos dirigentes e pelas dificuldades de se mudar um sistema arraigado em século de razoável funcionamento. Romper o status quo nunca foi fácil, mas sempre foi recompensador. Impossível ficar prostrado diante de sinais claros de mau funcionamento que o sistema vem nos dando, sinais claríssimos, diga-se de passagem. Sem as dificuldades, não construiríamos nada.

As soluções virão porque estamos demolindo os silos

Descartar qualquer inovação por achar que não tem correlação com previdência, sem dar uma olhada no que há abaixo da superfície, é reagir impulsivamente sem olhar um cenário mais amplo.

Não é difícil entender o motivo para críticas e a razão de muitos acharem que o segmento de cryptomoedas não deve ser levado a sério, quando o tweet de um bilionário faz um mercado inteiro se mover, quando o Bitcoin é usado para atividades ilícitas ou quando uma brincadeira como Dodgecoin se torna um ativo digital do dia para a noite.

A verdade é que previdência complementar tem tudo a ver com o futuro do dinheiro e esse tem a ver com cryptoativos e com a moeda digital. Vistos sob uma ótica mais abrangente, dá para perceber o porquê e o como das mudanças que essas novas tecnologias estão inspirando. A história dos cryptoativos vai muito além dos aspectos financeiros, envolve manifestações sócio-políticas e aspirações de liberdade, privacidade e inclusão.  

Uma geração inteira de novos investidores está encontrando nas iniciativas coletivas uma forma de exercitar sua voz e o critério deles para alocar seus ativos é influenciado por aspirações diferentes. Claro que um tweet pode afetar um mercado que funciona com base em narrativas e pode levá-lo para qualquer direção, mas os mercados tradicionais também não se movem a partir de meros sentimentos e percepções de risco? O dinheiro e o sistema financeiro tradicional, desde sempre, também não são palcos para desvios e “malfeitos”, mesmo com toda regulamentação e controle?

Os projetos e soluções no campo dos ativos digitais já ultrapassam geografias, perfis demográficos e áreas de especialização. Empreendedores, artistas, analistas, atletas, músicos, advogados, designers, investidores, desenvolvedores, jornalistas, escritores são apenas algumas das categorias que tem se juntado à comunidade crypto.

Mesmo que a turma do segmento de previdência não se encaixe em nenhuma delas, ainda que nenhum projeto relacionado a previdência tenha sido desenvolvido, nós também seremos parte da mudança. 

Em quase todas as áreas da vida, diversidade leva a avanços, derruba barreiras, nos torna mais fortes e constrói um mundo melhor.

Se vocês acham que os últimos três anos foram interessantes, vocês ainda não viram nada ...

Grande abraço,

Eder.


Fonte: Noelle Acheson, Managing Director of Research at Coindesk



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