terça-feira, 23 de junho de 2020

UM NOVO PRODUTO NÃO, UM NOVO PARADIGMA – PARTE III



De São Paulo, SP.

“A má notícia é que o tempo voa. A boa notícia é que você é o piloto” – Michael Altshuler
Essa é a terceira e última parte de uma trilogia de artigos analisando as transformações na relação das gerações mais novas com o sistema financeiro tradicional e os desdobramentos que isso poderá ter para bancos em geral e fundos de pensão em particular.
Se as transformações sociais e econômicas seguissem uma distribuição de probabilidades discreta e não uma distribuição contínua, como a vida real, poderíamos dizer com boa margem de segurança que 2020 é o ano da mudança. 
Esse é o ponto de inflexão na trajetória dos fundos de pensão. Não que os fundos estejam no controle das mudanças. Sequer significa que os fundos tenham identificado qual é o novo paradigma. Ou que suas estruturas e pilares estejam sendo adaptados para uma nova era. Quer dizer apenas que já é possível enxergar as causas da (dis)ruptura e para onde o novo modelo de negócios está apontando. 
Caem as antigas fronteiras em todos os mercados
O mundo vai sendo redesenhado. Transformações sociais e tecnológicas estão derrubando os antigos limites que definiam segmentos de mercado, indústrias e negócios – inclusive o dos fundos de pensão. 
O deslocamento das fronteiras que delimitavam a atuação dos fundos, torna indistintos os canais de distribuição, a finalidade dos produtos e a definição de competição. Atuar sob o novo paradigma requer a construção de experiências diferentes para o consumidor (participante), através da adoção de abordagens inovadoras e da criação de valor em um mercado que já não é mais vertical, nem se restringe às fronteiras da poupança previdenciária de longo prazo com ajuda da empresa. 
O novo ambiente é fluido, poroso e atravessa múltiplos segmentos de atuação. Quando as fronteiras são derrubadas, as coisas ficam menos previsíveis, mas o mercado ganha um alcance maior. A lição que vai ficar para os fundos de pensão não é a de um setor que está sendo reconstruído, mas sim de um que está sendo “desconstruído”.
Nenhuma surpresa quando descobrimos que o barco da previdência está à deriva e o GPS (estratégia) dos planos de aposentadoria já não aponta para um porto seguro. Apesar dos fundos de pensão não contarem mais com as ancoras seguras dos antigos pressupostos, uma nova rota vai se delineando.

Para enxergar o futuro com mais claridade, em meio ao nevoeiro criado pela evaporação das antigas fronteiras da previdência complementar, precisaremos de novas definições e horizontes diferentes de poupança para a aposentadoria.
Primeiro ponto: fundos de pensão precisam focar em plataformas de tecnologia. Elas são críticas para lidar tanto com as antigas como com as novas gerações. Precisam ser flexíveis, ágeis, rápidas e escaláveis. O lado bom é que essas plataformas tecnológicas estão disponíveis e não demandam investimento nem desenvolvimento direto pelos próprios fundos de pensão. AgeTechs, PensionTechs e todos os “techs” da vida são hoje “plug and play”.
Segundo ponto: os participantes de hoje possuem um timing diferente e buscam soluções que atendam suas demandas nos seus próprios termos. Eles definem quando, onde e como querem gerenciar suas economias. A interface com os participantes requer alternativas multi-canal e produtos que sejam fáceis de usar e fáceis de entender, qualquer que seja a idade. A poupança precisa ser incorporada de forma permanente e efetiva ao individuo, seus marcos e estilo de vida, não o contrário. Vai se tornando invisível a interseção da previdência com outros canais, indústrias e segmentos. Por exemplo: cartórios de registro civil ou lojas de enxoval de recém-nascidos se conectando com fundos de pensão como um “canal oculto” de oportunidade para atrair novos participantes e novas coberturas. Para capturar oportunidades desse tipo, com outras indústrias, os fundos de pensão precisarão criar networks de parcerias, canais digitais e soluções que alcancem os atuais e novos participantes. Cada fundo terá que identificar tecnologias, canais e parcerias que tenham sinergia com sua estratégia, para assim atender as expectativas de seus participantes atuais e futuros.    
Terceiro ponto: a explosão da quantidade de dados disponíveis e o aumento brutal da capacidade de análise deu margem nos últimos 5 anos a proliferação de novos produtos e serviços com valor agregado. Esses produtos se baseiam em novas fontes de dados, oferecem diferentes experiências aos consumidores e alavancam o uso de novas tecnologias. O mais importante, porém, é que as novas soluções visam atender a um novo conjunto de riscos e expectativas, particulares dos millenials e Genz. Isso levará os fundos de pensão a desenvolver produtos que reconheçam necessidades especificas e momentos específicos de vida. Não são apenas as fronteiras dos negócios que estão sendo apagadas, os próprios delimitadores da poupança de longo prazo vão caindo e se misturando com horizontes de curto e médio prazos. Isso permitirá o surgimento de poupanças sob demanda e soluções fundindo, por exemplo, a busca de retorno com filantropia. 
Os fundos de pensão vão, assim, se transformando em um grande provedor de serviços financeiros e não-financeiros. Para usar a terminologia da moda, porque não dizer que está surgindo o “Pensions-as-a-Service (PaaS)” ou o Fundo de Pensão como Serviço.
Fundos de pensão, criptoativos e dinheiro digital 
As criptomoedas não são um substituto para o dinheiro emitido pelo governo, eles são uma alternativa inteiramente nova ao sistema financeiro tradicional. Os criptoativos estão criando um modo totalmente diferente de gerenciar nossas finanças.
Com os criptoativos, você não precisa de intermediários para transferir patrimônio de uma pessoa para outra em qualquer parte do mundo, basta enviar um token protegido por criptografia. Como qualquer outra tecnologia disruptiva, os criptoativos não representam uma progressão natural para melhorar o status quo, não se trata de um passo incremental para frente. Eles oferecem uma maneira completamente nova para resolver problemas comuns sendo por isso difícil de entender e permanecendo seu potencial no campo abstrato. 
Você não consegue “ver”, por exemplo, uma nova forma de acumular, investir, usar e transferir o dinheiro das contas individuais do seu fundo de pensão. É difícil conceitualizar algo que não existia antes. O alcance fica impalpável e apenas os sonhadores conseguem imaginar coisas tipo: (i) usar a conta de “ativos de curto prazo” do seu fundo de pensão para os gastos diretos na sua viagem de férias ao exterior; ou (ii) levar sua conta de previdência junto com você quando for expatriado por alguns anos, afinal, os criptoativos fazem dele um “plano de previdência transnacional”; (iii) receber seu “salario” em criptomoedas diretamente na conta de seu fundo de pensão porque, graças à nova realidade criada pelo Covid-19, você trabalha em home-office aqui no Brasil para uma empresa em Angola. Parabéns, você é agora um trabalhador da nova era.   

Quando surge uma nova tecnologia, a maioria das pessoas a descarta rotulando-a como modismo, mas algumas percebem imediatamente suas implicações. Novas tecnologias alcançam êxito não porque tenham algum valor intrínseco ou mensurável em si, mas porque elas são usadas para fazer coisas que tem grande valor. A Internet criou uma nova maneira para trocar informações, mas as pessoas só perceberam seu valor quando ela foi usada no comercio eletrônico e na comunicação virtual.
Governos bancos e prestadores de serviços financeiros estão vendo os criptoativos simplesmente como uma maneira melhor para uma pessoa receber e enviar dinheiro. Desde que tudo o mais permaneça constante, apenas transferir o sistema financeiro tradicional para o blockchain fará com que ele continue perdendo terreno. 
“Cryptos”, como são chamados os criptoativos e criptomoedas, são mais ágeis e flexíveis e há um mundo de empreendedores trabalhando para faze-los ainda melhores. Qualquer um pode criar um novo sistema financeiro a partir do seu laptop, a qualquer momento. Já tenho até algumas ideias.
Muita gente imagina que o dinheiro digital criado por governos (escrevi sobre isso: aqui) assinará uma sentença de morte para os criptoativos. Olhe para os e-mails, eles revolucionaram o mundo, mas os correios continuam sendo usados e quase toda loja virtual depende deles para entregar seus produtos. Da mesma forma que os e-mails coexistem com os correios, o dinheiro digital pode coexistir com as criptomoedas. As pessoas sempre usam o que funciona melhor para elas.
Na medida em que os criptoativos se disseminem, não vai fazer diferença que tipo de dinheiro você tenha, economize e gaste. Da mesma forma que você tem chaves diferentes para abrir fechaduras diferentes, ou roupas diferentes para cada tipo de clima, você vai ter um pouco de cada nas contas de seu fundo de pensão para uso no curto, médio e longo prazos. Alguns cryptos, cada um com sua finalidade e função, junto com um punhado de “dinheiro governamental”. 
Você vai usar os cryptos onde esses forem requeridos e o dinheiro governamental onde apenas ele for aceito, nem vai pensar muito sobre isso. Até o dia em que as pessoas ao invés de pensarem porque alguém precisaria de criptomoedas, começarão a pensar: por que alguém precisa de dinheiro governamental?
Novas tecnologias como a “fracionalização de ativos” serão cruciais para as contas de previdência dos fundos de pensão (mais: aqui). O futuro dos planos de aposentadoria passa por eles e pelo Descentralized Individual Pensions applications (DIPaap) - criei esse conceito agora (risos).
Pra que sevem os fundos de pensão? Eles devem servir aos donos do dinheiro?
Quando Albert Einstein disse que “... relatividade se aplica a física, não a ética”, ele claramente ainda não conhecia a dificuldade para conciliar a visão dos conselheiros dos fundos de pensão com a dos ativistas de investimentos responsáveis. Afinal, o que é um investimento ético e responsável e o que não é?
Vem crescendo a pressão sobre os conselhos para que os fundos de pensão invistam o dinheiro dos participantes de forma ética, não importando o custo disso. Uma nova geração de participantes quer destinar suas economias para investimentos que tenham um impacto positivo sobre a sociedade. 
“Em toda reunião com participantes alguém levanta e faz uma pergunta sobre propósito”, diz Karen Shackleton, consultora de fundos de pensão ingleses. “Um fundo de pensão tem que correr atrás de rentabilidade, mas você quer que seja consistente com sua moral e suas crenças enquanto participante”, completa ela.

A pandemia do cononavirus vem mostrando a importância de uma governança baseada em princípios sociais. Os participantes mais jovens subiram o tom e estão argumentando que as empresas que mostram preocupação com aspetos sociais e ambientais são as mais sustentáveis e representam melhores oportunidades de retornos no longo prazo. Os conselhos dos fundos de pensão ao redor do mundo estão sendo martelados com o argumento de que faz parte de seu dever fiduciário, investir nessas empresas porque é a coisa mais financeiramente responsável a fazer. 
Na verdade, o assunto é bem mais complexo do que parece. Envolve regras centenárias de prudência, dever fiduciário, abordagens tradicionais de risco retorno e discussões sobre a representatividade (minoria?) e o envolvimento (apatia?) dos participantes dos fundos de pensão em defesa dessa causa. 
Por outro lado, o participante típico de um fundo de pensão, independente da geração, já adota um estilo de vida que abraça muitas das causas sociais e preocupações com o meio ambiente, diz Rupert Welchman, gestor adjunto de um fundo de ações do Union Bancaire Privée.
Cedo ou tarde o segmento dos fundos de pensão, por enquanto hesitante, terá que enfrentar de frente essa questão. Os conselhos ainda são bem tradicionais e sua composição não conta com membros particularmente “avant-garde”, comentou Vassos Vassou, ele próprio conselheiro no Dalriada. A resistência, ensina Vassou, é de toda a indústria dos fundos de pensão, de consultores a gestores de investimentos, conselhos e diretorias.
Novas tecnologias certamente contribuirão para o empurrãozinho que falta. A importância crescente dos aspectos ESG na seleção de ativos vem levando investidores a questionar a noção de que o valor é simplesmente um retorno financeiro. A tecnologia de fracionalização de ativos digitais, citada anteriormente nesse artigo, permite vislumbrar um ativo produzindo uma combinação de retorno financeiro com impacto ambiental. Tipo, 2% a.a. de juros e 10 árvores plantadas por ano.  Ou então a mistura de retorno e experiência do consumidor, por exemplo, direito a uma hora de carro compartilhado para cada 3 meses que você fique investido em determinado token. 
Por fim, tem o lado emocional muito, muito forte que pode ser ilustrado pela história da Dra. Bronwyn King. Médica australiana, ela dedicou a carreira a tratar pacientes de câncer. Até que em 2010 ela teve sua primeira reunião com um consultor de investimentos do seu fundo de pensão. A oncologista, que como a maioria das pessoas nunca tinha se dado ao trabalho de entender os investimentos do seu plano de aposentadoria, perguntou ao consultor aonde seu dinheiro era investido. O que ela descobriu, virou sua vida de pernas para o ar: quatro dos cinco maiores investimentos em ações do seu portfolio internacional estavam alocados em empresas de tabaco. “Todo o trabalho que eu passei a vida toda fazendo, tentando desesperadamente ajudar pessoas sofrendo as consequências do fumo ... estava sendo minado pelo meu próprio dinheiro, investido em empresas que fabricavam produtos que estavam matando diretamente essas mesmas pessoas”   
Não tem argumento, nem posições de conselhos de fundos de pensão, que possam se contrapor a algo assim.
Finalizo essa trilogia com uma frase de Coco Channel, que pode ajudar no (re)direcionamento: “Não perca tempo batendo em uma parede, esperando transformá-la em uma porta”.

Grande abraço,
Eder.


Fonte: Adaptado dos seguintes artigos:




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