sábado, 2 de outubro de 2010

Série Os Supercentenários – Parte IV : Jeanne Calment, uma Matusalém moderna

Série Especial de Reportagens - Projeto QVO VADIS

“Estou começando a achar que eu sou um fenômeno” (Jeanne Calment)

Jeanne Calment é provavelmente o ser humano que mais viveu até hoje. Ela morreu em 4 de agosto de 1997, na cidade de Arles no sudoeste da França.

Ela nasceu naquela mesma cidade em 21 de fevereiro de 1875. Viveu, portanto, 122 anos, cinco meses e 14 dias. Isso fez dela não apenas uma celebridade da mídia, mas também um fenômeno para os pesquisadores da longevidade, por ter excedido o que por muito tempo foi considerado o limite absoluto da longevidade humana.

Nota: Na sequência de fotos, aos 20, 40, 60, 113 e 122 anos de idade.

Ao longo do curso de vários anos, Michell Allard, um médico de Paris que iniciou o estudo dos centenários na França, Victor Lèbre, o médico da própria Mme Calment, e Jean-Marie Robine, um demógrafo da Universidade de Montpellier, conduiziram diversas entrevistas com Jeanne Calment e reuniram seus gracejos e aforismos em um livro sobre ela, fonte das informações sobre sua vida.

“Toda idade tem suas alegrias e problemas”

Os arquivos do cartório da cidade de Arles, incluindo os documentos sobre Mme Calment, estão guardados no antigo prédio do hospital psiquiátrico onde o pintor Van Gogh foi tratado. Os arquivos em Arles, uma cidade antiguíssima com raízes que remontam aos tempos dos Romanos, estão excepcionalmente bem conservados.

Os nascimentos e mortes em cada ano estão registrados em ordem cronológica em livros próprios para cada ano, com uma tabela anexa onde os registros podem ser encontrados em ordem alfabética.

Volumes especiais listam todos os registros em ordem alfabética para cada período de 10 anos. O recenseamento na época era feito a cada cinco anos. Portanto, foi possível acompanhar a trajetória de Mme Calment ao longo dos anos, identificando seus vários (mas não numerosos) endereços residenciais em Arles, onde ela viveu e verificando com quem ela viveu nos diferentes estágios de sua vida.

Ao todo, o nome de Jeanne Calment aparece em 16 diferentes censos demográficos entre 1875 e 1975. Robine e seus colegas reuniram 23 certidões e documentos mostrando as datas de nascimento, batismo, casamento e morte de seus parentes mais próximos. Da certidão de casamento dos pais dela ao atestado de óbito do neto.

Jeanne Louise Calment – esse era seu nome de solteira – teve um irmão mais velho, Antoine, que nasceu em 1862, mas viveu apenas cinco anos. Teve também uma irmã mais velha, Marie, nascida em 1863, que morreu na infância.

Jeanne nunca conheceu esses irmãos, já que nasceu em 1875. O único irmão que conheceu foi Francois, dez anos mais velho, nascido em 1865.

Seus pais tinham ambos 37 anos de idade quando ela nasceu. Uma certidão de casamento mostra que ela casou em 1896, aos 21 anos, com seu primo de segundo grau, Fernand Nicolas Calment (seus avós paternos eram irmãos).

O demógrafo Americano James W. Vaupel, o demógrafo Finlandês Vaino Kannisto e o epidemiologista Holandês Bernard Jeune visitaram Jeanne Calment no dia seguinte ao seu 120º aniversário.

Juntos, formaram uma comissão não-oficial com o objetivo de analisar os documentos que Robine e sua equipe encontraram nos arquivos de Arles. Na época especulava-se sobre a real idade de Mme Calment, se ela seria tão idosa quanto se alegava.

Caso a análise detalhada dos documentos reunidos por Robine e sua equipe pudesse afastar toda a dúvida e confusão reinantes, então ela seria “la doyenne de l'humanitè" (a mais velha da humanidade), como a chamavam seus compatriotas.

Foi, portanto, de grande importância que especialistas imparciais examinassem os documentos originais. O único erro que essa equipe de pesquisadores encontrou foi um equívoco no seu nome do meio, registrado em alguns censos.

Os pesquisadores tentaram, então, descobrir se alguma outra criança havia nascido na família Calment entre as datas de nascimento de Francois e de Jeanne ou mesmo após o nascimento dessa última.

Havia, claro, outras crianças com sobrenome Calment, já que a família tinha várias ramificações na cidade, mas os documentos provaram que essas crianças nasceram de pais diferentes dos de Jeanne.

Não havia absolutamente nenhum dado sobre os pais de qualquer dessas outras crianças, sugerindo que qualquer dos nomes havia sido trocado. Os fatos, portanto, mostraram-se extremamente convincentes e de longe, melhor documentados do que qualquer outro caso conhecido de pessoa com longevidade excepcional.

Robine havia conduzido uma profunda investigação, retroagindo cinco gerações até a época em que os ancestrais de Jeanne Calment haviam vivido.

Seus 62 ancestrais diretos – os dois pais, quatro avós, oito bisavós, 16 trisavós e 32 tataravós – pareceram ter vivido mais, em média, do que pessoas no grupo de controle para cada periodo em questão.

Um grande número deles viveu além dos 80 anos de idade, especialmente entre os ancestrais de seu pai.

Morando em Arles no periodo entre 1700 e 1900, essas gerações sobreviveram à praga de 1721, à fome causada pelos invernos de 1708/09 e 1788/89 e à quatro epidemias de cólera, em 1832, 1835, 1854 e 1884.

Jeanne Calment, porém, foi a única a sobreviver além dos cem anos. Ela própria desejou que seu irmão, Francois, tivesse vivido até os 100 (ele morreu em 1962 aos 97 anos), mas como ela falava: “Deus não quis que houvesse dois centenários na mesma família, então caiu prá mim”.

“Eu perdi meu marido, minha filha, meu neto”

A partir da idade de 88 anos, Jeanne Calment passou a viver sem um parente próximo. Seu marido e primo de segundo grau, Fernand, morreu aos 74 anos de idade, em 1942. Sua filha única, Yvonne, havia morrido aos 36 anos em 1934.

Seu único neto, Frédéric, também morreu aos 36 anos de idade em decorrência de um acidente de moto em 1963. Apesar de casado, ele não teve filhos. Seu irmão, Francois, casou e teve uma filha, que morreu aos 21 anos.

Jeanne Calment falava relutantemente de sua tristeza com essas perdas. Quando se mudou para uma casa de repouso aos 110 anos ela não quis pendurar na parede fotos de sua filha nem de seu neto, porque isso apenas despertaria suas memórias.

Ela sempre olhou para a frente ao invés de para trás. Não obstante, eles faziam parte de seus desejos futuros: “Quando eu estiver deitada no meu caixão, quero que ponham a foto de meu neto no meu lado direito e uma foto de minha filha na minha esquerda. Assim eles serão enterrados comigo”. Parece que esse seu desejo foi cumprido.

“Deus me deu tudo que eu pedi a Ele”

Ela gostava muito mais de falar sobre seu pai, que foi um construtor de barcos na cidade. Tinha um grande amor por ele e o ouvia “como a um oráculo”. Ela contou ansiosamente aos autores sobre o lançamento de seu último barco de madeira, que foi batizado com o nome dela.

Falou sobre seu encontro com Van Gogh aos 13 anos de idade, sobre as roupas que usou durante sua missa de crisma e no seu casamento, sobre seu marido, com quem adorava caçar, apesar de nunca o ter ajudado em seus negócios, sobre o seu prazer em pintar, tocar piano e ir à ópera em Marselha – em outras palavras, sobre sua alegria de viver: “Eu me diverti, eu estou me divertindo”.

Mme Calment se permitia um copo de vinho do porto e um cigarro por dia. Gostava de um bom vinho e boa comida, incluindo bolos de chocolate, que comia todo dia. Mas não ligava muito para a vida social: “Eu não gostava de fazer visitas, eu não gostava do mundo elegante, mas eu adorava estar do lado de fora, no ar fresco”.

Como seu marido, ela era uma grande andarilho e no seu dia a dia, corria ao invés de andar. Ela gostava de fazer as coisas depressa, como na primeira e única vez em que deu a luz: “aconteceu de acordo com a natureza, como todas as coisas que eu faço. De repente. Tinha que ser feito rápido”. 

O ditado popular devagar se vai ao longe, não se aplica a ela.

A partir de sua infância, ela viveu sem preocupações com bens materiais e nunca teve que trabalhar, nem dentro de casa nem fora. Quando perguntada sobre como lidava com as tarefas domésticas, ela respondia no melhor estilo da elite: “Com saliva meu querido, eu apenas tinha que comandar”.

Jeanne Calment era uma mulher decidida, com forte disposição. Ela própria frisou isso em várias ocasiões: “Eu tinha uma disposição dos diabos”; “Eu era fisicamente forte”; “Eu tinha personalidade” e “Eu não tinha medo de nada. Eu era frequentemente censurada por isso”.

Ela era, também, repleta de curiosidade, mas sem nenhuma obsessão: “Eu me interesso por tudo, mas não sou apaixonada por nada”. Seu jeito decidido nunca a abandonou, como testemunhado pela história a seguir.

Mme Calment se mudou para uma casa de repouso aos 110 anos. Antes disso, ela administrava, mais ou menos, seu apartamento. Sua mudança para a casa de repouso não se deu em razão de doença, mas ao fato dela quase ter colocado fogo no seu apartamento durante um inverno. Num dia frio de janeiro, a água do boiler, localizado no teto, havia congelado. Então ela acendeu uma vela, subiu em cima de uma mesa e tentou derreter o gelo com o calor da chama da vela.

Isso fez com que o material de isolamento térmico se incendiasse , soltando grandes labaredas. Os vizinhos notaram a fumaça e acionaram a brigada de incêndio, que conseguiu apagar o fogo.


Com muita relutância, Jeanne Calment mudou-se para a casa de repouso.

Lá, fez amizade com uma das enfermeiras que fumava um forte e escuro cigarro Francês da marca Galoise. Mme Calment costumava fumar uma marcar mais fraca, mas a convivência com a enfermeira, a fez adquirir gosto pelo forte cigarro Francês.

Numa noite, quando subia a escada em direção ao quarto da enfermeira para fumar, sofreu uma queda e acabou fraturando o quadril aos 115 anos. Apesar de sua idade, se submeteu a uma cirurgia que se mostrou bem sucedida.

Alertada de que poderia não voltar a andar novamente depois de sua recuperação, ela replicou laconicamente: “Vou esperar, tenho todo tempo do mundo”. Ela se recuperou gradualmente e dentro de poucos dias foi capaz de se levantar da cama. Conseguiu ficar de pé, mas dalí em diante ficou praticamente presa a uma cadeira de rodas.

Ter sobrevivido por mais de sete anos após se submeter a uma operação em uma idade tão avançada requer, de fato, uma grande vontade de viver: “Eu não estou cochilando, estou revivendo os bons momentos da minha vida e nunca fico entendiada”, dizia.

No final da vida, ela estava virtualmente cega, com pouca audição e presa a uma cadeira de rodas. Entretanto, afora uma leve arritmia no coração, uma tosse crônica e o reumatismo, ela não sofria de nenhuma doença séria.

Dentre seus antigos problemas estava a enxaqueca. Na idade de aposentadoria ela aquebrou o tornozelo. Aos 100 anos quebrou a perna e o cotovelo numa queda, mas se recuperou e aprendeu a andar novamente.

Conforme mencionado, ela não voltou a andar após a fratura no quadril aos 115 anos, mas sobreviu a operação numa idade em que ninguém mais havia se submetido a uma grande cirurgia.

Alguns anos depois, ela contraiu uma forte gripe, que a deixou bastante fraca e deprimida. Todos pensaram que seria seu fim, mas ela também sobreviveu a esse episódio.

Durante seus últimos anos Mme Calment foi examinada em várias ocasiões para detectar sinais de esclerose incipiente. A cada seis meses ao longo de vários anos a neuropsiquiatra, Karen Ritchie, testou sua memória e registrou o resultado em um jornal científico.

Ela melhorou (seu raciocíneo) com o tempo, nada menos do que em aritmética, provando que nunca é tarde para se aprender matemática. Ela gostava de colaborar com os estudos, recitando poemas, fábulas e músicas que aprendera na infância.

Essas visitas dos pesquisadores, que compensavam a falta de visitas de parentes, aliada ao evidente prazer que ela sentia com as mesmas, podem ter contribuido para prolongar sua já longa existência.

Considerando que ela estava presa a uma cadeira de rodas, nada disso teria sido possível, claro, se ela não fosse capaz de encontrar equilíbrio interior.

Como ela mesmo colocava: “ Minha visão está ruim, minha audição está ruim, eu me sinto mal, mas eu não estou sofrendo, eu não reclamo”.

E prosseguia, dizendo: ”Não me falta nada. Tenho tudo de que preciso. Tive uma vida boa. Vivo em meus sonhos, em minhas memórias, minhas belas memórias”.

Apesar dela ter segredos que, sem dúvida, não compartilhava com ninguém, havia ao menos um segredo que ela queria dividir: “Sempre mantenha seu senso de humor. É a isso que eu atribuo a minha vida longa. Eu acho que vou morrer rindo. É parte do meu programa”.

Um de seus gracejos, em particular, conhecido por todos na cidade, era: “Eu nunca tive mais do que uma ruga e estou sentada em cima dela”.

“Estou esperando pela morte e pelos jornalistas”

Jeanne Calment foi uma lenda em sua cidade natal, onde viveu toda sua vida. Ela sempre teve conhecimento disso e gostava de sua fama: “Esperei 110 anos para ser famosa. Pretendo aproveitar o máximo possível e pelo maior tempo que puder”.

Ela esperava não apenas pela morte, mas também pelos jornalistas, que compareciam fielmente a todos os seus aniversários nos seus últimos anos de vida.

Diferentemente de muitos outras pessoas em torno dos cem anos, ela não se sentia completamente abandonada por Deus: “Eu sou o pequeno anjo de Deus”.

No fundo, ela procurava uma explicação para o esquecimento dele: “Ele esqueceu de mim. Ele não pode estar com pressa para me ver. Ele já me conhece muito bem”.

Ela sabia do seu valor histórico: “Eu sou uma Matusalém moderna”, dizia.

Abraço,
Eder.


Fonte: Adaptado de Demographic Research Monographs, 7 – 2010 - Springer Heidelberg Dordrecht

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